Encontros e perdidos com o primeiro exagerado

Antônio Carlos Miguel revive seu intenso convívio com Julio Barroso e reconhece como, de certa forma, o amigo nunca foi embora

Para ser lido ao som de Gang 90 & Absurdetes

Ele inaugura um trio de amigos exagerados que partiram para o nada antes. Na despedida daquele que foi o último destes, há quase um ano e meio, Jorge Salomão (1946-2020), caiu a ficha da associação de Julio Barroso (1953-1984) com o irmão três anos mais moço de Waly Salomão (1943-2003, outro que, de certa forma, também entraria na restrita galeria de personagens incomuns que tive o privilégio de conhecer) e, completando a troika, Ezequiel Neves  (1935-2010). Este, o parceiro do Exagerado Cazuza na letra para a música do nada exagerado Leoni – um que, com seus bons modos, quando comparado à dupla da canção, certa vez escrevi parecer o William Bonner do rock brasileiro.

Poderia ser um quinteto, mas, com o então cantor e letrista do Barão Vermelho minha relação nunca foi direta. Quase sempre compareci como plateia ou jornalista, ele no palco, em disco ou dando entrevista. Nos raros encontros que tive quando Agenor estava longe de holofotes, Zeca andava por perto, misto de produtor, parceiro, guia intelectual ou, como se autodenominava, madrasta dele e do grupo que prosseguiu sem o Exagerado. Enquanto em relação aos irmãos Salomão, sempre fui mais próximo de Jorge – o que nunca impedia os telefonemas às 7 da manhã de Waly, que, sem preliminares, entrava no assunto como que retomando uma ligação interrompida.

Julio abre a série por ter sido o que mais cedo conheci, ainda no ano em que completaria 16 anos e ele, 17. Estamos no verão de 1971, lagarteando no jardim de pedras que Burle Marx criou para o Museu de Arte Moderna no Rio, após mais um filme na Cinemateca. Tarde de domingo em fim de fevereiro – data devidamente googleada, usando como referência o Festival de Guarapari, no qual eu estivera, entre os dias 11 e 12 daquele mês –, quando aparece o cara que a namorada de meu irmão um ano mais velho dissera ser a nossa cara. Visualmente, era o oposto, o que, no século 21, chamamos de nerd. Nós, adolescentes ripongos, longos cabelos, largadões; ele, calça e camisa sociais finas, cabelo curto, lentes grossas nos óculos.

Apresentação feita, o recém-conhecido sugeriu uma intera e se ofereceu para providenciar a maconha que pegaria na Mangueira. Aceitamos, mas, para o grupo, em sua maioria da Zona Sul carioca, aquela era uma aventura impensável. O sol se deitava, uma desconfiança de inevitável banho já estava no ar, quando, acompanhado de um amigo como ele da ZN, Julio voltou com um pacote de erva.

Muitos baseados depois, éramos colegas de infância, ligados pelo interesse mútuo e obsessivo por música. Certo tipo de música, que começava por rock e passava por jazz, blues, clássico, tropicália, samba e não parava. Miles, Hendrix, Bessie, Hermeto, King Crimson, Nelson Cavaquinho, Satie…

Julio virou presença frequente no apartamento de três quartos onde mãe e pai e cinco filhos (mais a vó materna itinerante e sazonal) se apertavam no Flamengo e ainda enchíamos de amigas e amigos. A aparência estranha para nossos padrões vinha de pressão paterna. Acabara de sair de internação em clínica psiquiátrica pelo uso de substâncias ilícitas (e abusado de lícitas) e deveria andar na linha. Naquele bando encontrou algum refúgio e, em estado de turbulência perene, raciocínio rápido, capacidade de acumular e processar conhecimento, exerceu influência, pregando por uma constante insurreição e estética vanguardista. Anos de chumbo da ditadura, éramos os que acreditavam na revolução contracultural: longos cabelos, LSD, vida em comunidade e na estrada, misticismo orientalista além das igrejas, alimentação natural estavam entre os ingredientes que levariam à radical mudança dos Sapiens. Como sabemos, deu ruim – e piorou ainda mais nessa distopia bolsonarista.

Julio foi dos que mais a sério levou a receita. Um ano depois, aparentemente, virara um monge, longos cabelos e barba. Fugiu com uma amiga da turma (semanas depois recuperada pela família), caiu na estrada, morou em comunidade, encontrou a companheira que lhe deu o filho único. Em fins de 1973, os três mais meu irmão João partiram num Jipe dos anos 40 para terras que o pai de Julio comprou nos arredores de Brasília. Poucos meses depois, a vida no mato virou insustentável e trocaram Luziânia por comunidade numa das cidades satélites. Num restaurante macrobiótico do Plano Piloto, ficam amigos de um empreendedor alternativo baiano, Wanderley Lopes, primo do escritor Antônio Torres e ligado a Gilberto Gil, e se juntam à equipe que fez por quase dois anos o alternativo Ordem do Universo. É nesse veículo mensal que Brother e Julio começam o envolvimento com o jornalismo musical.

Quase dois anos se passam e sou acordado cedo por Julio. Voltara ao Rio, morava na Ilha do Governador com Naiade e Rá e iria criar uma revista, novamente bancado pelo pai (a família trocara uma casa no Grajaú por um apartamento de frente para a Praia de Ipanema), e me oferecia o posto de co-editor e fotógrafo. Eu, no primeiro período de Jornalismo, após um ano numa agência de fotografia, com zero de experiência em edição; ele, com o curso prático intensivo no tal jornal alternativo, experiência ao cubo. Fomos atrás de colaboradores voluntários. Luiz Carlos Maciel, então um guru para nossa tribo graças à coluna Underground que mantinha n’O Pasquim e à versão pirata da revista Rolling Stone que circulou por um ano no Brasil, foi o primeiro a dizer sim. Tocávamos nas campainhas, nos apresentávamos e assim adicionamos ao expediente da Música do Planeta Terra alguns de nossos ídolos, Jorge Mautner, Caetano Veloso (que escreveu em todos os cinco números lançado no período de um ano), Gilberto Gil, Jorge Salomão, Ronaldo Bastos, Abel Silva. E também minhas mãe Eglê Malheiros (que traduziu de Henry Miller a Allen Ginsberg) e irmã Sônia (que fez o contato e dividiu a entrevista com Ismael Silva) ou amigos como o letrista Sérgio Natureza, o fotógrafo Ricardo Beliel, os poetas Salgado Maranhão, Chacal e Xico Chaves, o ilustrador Resende.

Conteúdo e edição melhoravam mas a estrutura era precária, atrasamos a entrega e perdemos a distribuição nacional da Abril. Com o fim da publicação, passamos a colaborar com outros veículos alternativos, incluindo nosso rival no período, Jornal da Música, que começara como um encarte de Rock: A História e a Glória, pôster-revista editado por Ana Maria Bahiana, Ezequiel Neves e Tárik de Souza. Logo em seguida, por volta de 1977, 1978, Julio vira um dos ghost-writers da coluna de Nelson Motta n’O Globo. Em 1979, passa uma temporada em Nova York. Antes, ficou alguns meses hospedado em Santo Domingo, na casa de um amigo dominicano que estudara Comunicação no Rio. O período no Caribe coincidiu com as locações de La Luna, de Bernardo Bertolucci, quando Julio se envolveu com uma das atrizes coadjuvantes e aprontou de tudo no set de filmagens.

Acompanhávamos essas aventuras através das cartas que ele remetia para minha companheira K e eu. Muitas delas depois publicadas no póstumo A Vida Sexual do Selvagem, uma coletânea de textos e desenhos de Julio e depoimentos sobre ele organizada pela irmã Denise (1955-1993), a vocalista Lonita Renaux nas Absurdettes.  De uma segunda temporada em Nova York, em 1980, voltou com a ideia de criar a banda, inspirada em Kid Creole & the Coconuts, grupo multigênero e multirracial que misturava new wave e Caribe. A essa altura, também já era um anárquico DJ, dividindo as carrapetas com o bem mais profissional e descolado Don Pepe nas casas que Nelson Motta criou entre o Rio e São Paulo: Dancin’ Days já instalado no topo do Morro da Urca, Pauliceia Desvairada, Noites Cariocas.

Ainda graças à ajuda de Nelson, Leonardo Neto (depois empresário de Rita Lee, Marisa Monte, Regina Casé) e Ezequiel Neves, pôde idealizar e voar alto com Gang 90 & Absurdettes, o grupo que chegou à final do Festival MPB-Shell de 1981 na Rede Globo com Perdidos na Selva. Canção em parceria com Guilherme Arantes, não creditada pelo fato deste também concorrer no mesmo evento com Planeta Água.

A Gang 90 deu a senha para o rock brasileiro que iria tomar de assalto a música brasileira com o compacto de Perdidos na Selva, que, no lado B, trazia uma versão para música de Siouxsie & The Banshees que K e eu fizemos com Julio e batizamos de Lilik Lamê (passamos longe da letra original de Christine). O primeiro álbum saiu em 1983, quase um ano depois das estreias de, entre outros, Blitz, Lulu, Barão e Lobão, mas, manteve o interesse com sua colagem de rock, pitadas jazzísticas, poesia concreta e demais referências de vanguarda.

Atraso que foi compensado por alucinados shows, participações em programas de TV, destruição de quartos de hotéis e fugas, perseguidos por furiosos promotores em alguns lugares. Luiz Fernando Borges, que produziu o álbum e empresariou a banda no período, tem relatos cinematográficos dos catastróficos (pra lá de Led Zeppelin mas sem um milésimo da grana destes) incidentes em Florianópolis e em Maceió, esta a cidade do guitarrista e também compositor e cantor Herman Torres, que deu o suporte musical para os voos de Julio nesse momento.

Em 6 de junho de 1984, com a Gang 90 remontada (incluindo a volta do baterista Gigante Brasil), ensaiando para um segundo álbum que Ezequiel Neves iria produzir na Som Livre, Julio caiu do apartamento em que morava no Centro de São Paulo. Não teria motivos para se jogar, aparentemente, debruçou-se para vomitar e perdeu o equilíbrio. Na época, tomava medicamentos para combater o alcoolismo e a cocaína e reclamava de náuseas. Duas semanas antes, tinha vindo ao Rio, passamos algumas horas de uma tarde cinzenta na praia. Nós quatro, ele com a então companheira Taciana Barros, que entrara no lugar de Alice Pink Pank na banda e, após a tragédia, gravou o que seria o segundo álbum (Rosas e Tigres).

Nunca vira Julio tão calmo, gostei de saber que tentava domar os excessos, mas, na verdade, sentia falta do exagero habitual e saí do encontro com sensações estranhas, nas quais tristeza e melancolia davam as caras.

A verdadeira despedida aconteceu na noite do velório, que avançou pela madrugada num bar em frente ao cemitério do Caju. Virou uma festa, cerca de quatro dezenas de amigos em delírio, como que conversando com o morto. Seu Murilo passou pelo bar e nos disse que também via o filho ali entre nós. E, de alguma forma, Julio Barroso nunca foi embora.

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