Lester Young, o presidente

Norberto Flach* estreia na AmaJazz dando sequência ao debate jazzístico-eleitoral e lembrando um forte candidato que nem precisou entrar na disputa: era favorito

Para ser lido ao som de The Jazz Giants , de Lester Young
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Lester Young: a imaginação melódica aliada a um divisão rítmica inventiva | Foto: William P. Gottlieb/Biblioteca do Congresso dos EUA

Aos 49, Young era jovem quando morreu. Para o padrão atual, certamente. Talvez não para os padrões do seu tempo (1909-1959): a violência de duas grandes guerras, a depressão econômica, a falta de tratamento para doenças comuns, tudo contribuía para abreviar uma vida. Ainda mais de quem vivia sob as leis de segregação racial, que pesavam sobre a gente negra do Mississippi, da Louisiana e de todo o sul dos Estados Unidos. Não surpreende que trabalhasse desde os cinco anos, vendendo jornais, lustrando sapatos, fazendo o que tivesse que fazer para ajudar no sustento da família. Mas aí é que está: essa era uma família de músicos, como tantas outras na história do jazz. E naquela eternidade apressada da infância, vivendo ao lado de Nova Orleans e sempre ouvindo música em casa, cedo já tocava trompete, violino, bateria…. Então, já estava pronto aos dez anos, quando o seu pai decidiu pegar a estrada com ele e os irmãos, montando uma banda vaudeville que acompanhava o Hagenback and Wallace Circus.

Aos 13, Lester trocou a bateria pelo saxofone. Não era tanto uma questão musical, mas de portabilidade: “Cansei de ter que ficar até tarde desmontando a bateria. Depois do show, eu dava uma olhada nas meninas, mas antes que conseguisse terminar de guardar todos os tambores, elas já tinham ido embora”. Começou com o sax barítono, mas uns anos depois o problema da portabilidade/praticidade iria aparecer, de novo. Foi quando tocava com os Bostonians de Art Bronson: “O barítono era muito pesado. E eu sou preguiçoso mesmo, sabe? Então quando o cara do tenor foi embora, fiquei no lugar dele”.

E foi com o sax tenor – e um pouco de clarineta – que Lester Willis Young chegou a presidente. De Billie Holiday, ganhou o apelido, que ninguém jamais contestou: “The Prez”. Ele retribuiu: a sua irmã de alma musical seria para sempre “Lady Day”.

No início dos anos 30, Prez (ou Pres) já tocava regularmente com o grupo de Count Basie, baseado em Kansas City. Quando Lester já estava considerando sair, em 1934, recebeu um convite para tocar no conjunto de Fletcher Henderson, onde Coleman Hawkins deixara vaga a cadeira de sax-tenor. O que poderia ser um problema: muita gente queria que Young tocasse como Hawkins. Cinco anos mais velho do que Prez, Hawk era o tenor de referência desde os anos 20, quando praticamente inventou o saxofone de jazz. O seu som cheio, direto, exuberante, com abundante uso do vibrato, era ótimo para as big bands, em que sete ou oito sopros tinham que competir, ao mesmo tempo, em busca de alguma atenção. Ficou famosa a história de que os dois trompetistas da banda de Fletcher haviam se acidentado e não poderiam tocar à noite. Hawk acabou assumindo a parte escrita para o primeiro trompete. Ninguém deu pela troca, porque ele tocou em volume e velocidade inacreditáveis para um saxofonista.

Só que esse era o oposto da musicalidade de Lester, que queria poder tocar de um modo mais leve e fluido, íntimo, talvez lírico. E sem fazer força. Nada a ver com o rugido enérgico e viril que era – para muitos, ainda é – a referência do sax-tenor.

Em uma entrevista que deu ao fotógrafo François Postif em Paris, menos de dois meses antes de morrer, Lester disse que nunca gostou de big bands. Sem a ansiedade dos grandes conjuntos, até dava para pensar em improvisações mais longas, oblíquas, com menos notas, valorizando o silêncio, flutuando sobre o ritmo em variações sutis. E alguma doçura, claro. Afinal, Lester Young era “The sweetest swinging music man”, como canta Joni Mitchell em Goodbye Pork Pie Hat, a elegia que Charlie Mingus dedicou a Lester.

O homem era doce e gentil também no trato, como dizem todos que o conheceram. Ainda que tímido, tornou o chapéu e os mocasins suas marcas registradas. Chamava homens e mulheres, indistintamente, de “lady”. Inventou gírias que ainda hoje são usadas: “cool”, “nice biscuits” (para os dedinhos dos pés das moças que usavam sapatos abertos). E a melhor de todas: quando o convidavam para uma gig, perguntava “Okay, how does the bread smell?” (“Qual é o valor do cachê?”). E a posição peculiar de tocar até hoje é um enigma: ninguém sabe porque ele deixava a cabeça cair para a direita e segurava o saxofone inclinado, em 45 graus, às vezes quase na horizontal (também não se sabe por que, depois da guerra, esse jeito mudaria, com Lester passando a tocar na posição mais convencional).

Para o homem sensível e gentil que era, a época trazia de muitas dúvidas. E de transição. Não só para ele: para a história do jazz. Em todo caso, Lester aceitou o convite de Henderson. Então veio Nova York, sede da nova banda, onde o novo tenorista foi morar em março de 1934. Logo saiu em turnê, mas alguns meses depois estava de volta, para uma temporada no Apollo Theater. Então vieram os bares do Harlem, onde Billie cantava. Bastaram algumas jam sessions para que Lester descobrisse o óbvio: sempre tocara como Billie cantava. Aí fechou, porque ela descobriu que queria cantar como ele tocava. Dali em diante, nunca mais houve um casamento musical como aquele, de absoluta cumplicidade e compatibilidade estética. Podia mudar o circo, podiam variar os outros acrobatas, mas eles eram sempre os dois trapezistas que mais se divertiam. E como se divertiam! Quem já ouviu a versão de I Cried for You (de Arnheim, Freed eLyman) que os dois gravaram com Teddy Wilson, não tem dúvida. Prez e Lady Day morreram jurando que nunca dormiram juntos (é fato que chegaram a morar juntos: cansado dos hoteis do Harlem, ele se mudou para o apartamento onde ela vivia com a mãe).

Muito do que se diz sobre o estilo de Young, pode ser dito sobre o de Holiday: as vozes sinuosas, melífluas sem ser melosas, a imaginação melódica aliada a um divisão rítmica inventiva, flutuante, de sílabas imprevisivelmente escandidas. Com pleno controle da estrutura, da forma, não tinham pressa no sentido musical, do andamento ou da quantidade de notas (o que era um desafio quando os músicos tinham que dar o recado em não mais do que três minutos e meio, antes do LP de 33rpm). E nunca cederam à superficialidade ou ao clichê: se do seu tenor quase nunca saíam aqueles grasnados de ganso, ela tampouco gritou, nem fez scat singing. Tinham uma voz – duas vozes – original e de insuperável profundidade emocional, capaz de contar uma história sobre a vulnerabilidade e a urgência de viver que, fora os dois, é sem exemplo. Mais jazz que o dois, impossível. Mas também é um canto autêntico do blues, de sorriso triste. É bittersweet, mas sempre na fineza: a amargura não será jogada na sua cara.

Verdade que a qualidade do timbre – e do fôlego – dos dois variou bastante ao longo do tempo. Entre os dias bons, dos anos 30, e os dias ruins do final dos anos 50, muita coisa aconteceu. Não foi só com Prez e Lady Day. As histórias tristíssimas de racismo, violência, abuso de bebida e outras drogas, prisões e internações hospitalares são bem conhecidas. E também nesses aspectos, porque nem tudo era só música, as biografias de muitos jazzistas se cruzam e se confundem.

Há quem prefira entrar nos mais miúdos detalhes biográficos para falar mal das últimas gravações de Lester Young (e de Billie Holiday). No caso de Young, é muito difundida a opinião de que não seriam boas as gravações posteriores ao período em que prestou serviço militar, entre 1944 e 1945. Quem o viu e ouviu ao vivo, a partir do final dos anos 40, falou em decepção. E até de alguns vexames. A irregularidade da música de Prez teria a ver com um crescendo de traumas: treinamento militar pesado, maus tratos e, claro, racismo, culminando com uma corte marcial. Flagrado com maconha no quartel, puxou quase um ano de cadeia em Fort Leavenworth, Texas, onde o único alívio eram os papos com Gil Evans, que servia por lá. Seu tema D. B. Blues vem daí – D. B. para Detention Barracks. No final de 1945 deu baixa, com desonra.

Mas tudo isso importa menos: até mesmo na sua melancolia, Lester sempre foi, continua sendo, inconfundível. E uma boa resposta aos críticos adeptos do determinismo biográfico, já vinha ligeira, ainda em 1946, numa espetacular gravação em trio de Mean to Me (Turk e Ahlert). Acompanhado por ninguém menos que Nat King Cole e Buddy Rich, Lester conhecia bem a letra da música, que tantas vezes tocara com Billie. Termina assim: (You treat me coldly/Each day in the year/You always scold me/Whenever somebody is near, dear/It must be great fun to be mean to me/You shouldn’t, for can’t you see/What you mean to me).

Em 12 de janeiro de 1956 Lester Young gravou, pela Verve de Norman Granz, um dos grandes álbuns de qualquer tempo: The Jazz Giants. Se não tinha “a whole lot of noise — trumpets and trombones”, tinha um de cada, tocados por Roy Eldridge e Vic Dickenson, respectivamente. Mais a guitarra de Freddie Green e o trio com quem Lester gravaria, no dia seguinte, as sete faixas de Pres and Teddy: os velhos e leais amigos Teddy Wilson no piano, Gene Ramey no contrabaixo e Papa Jo Jones na bateria.

Daria para passar até o fim dos tempos falando de cada uma das cinco faixas de The Jazz Giants. Cinco histórias completas, com início, meio e fim, de cadências e durações variadas – a mais curta, entre 6min47s; a mais longa, 10min04s. Já na primeira música, Guess I’ll Have to Change My Plan(Schwartz e Dietz), depois da breve introdução de Teddy, Lester passeia pela melodia devagar, como quem não quer nada, e não dá a menor bola para aquele verso da letra, que diz “My boiling point is to low”. Aos 2min28s é que a coisa sobe meio grau: o trombone de Vic Dickenson faz a melhor entrada da história do jazz (ouçam, depois me cobrem) e o seu solo dá sequência ao passeio, sem se apurar nadinha, até chegar a vez de Teddy Wilson – aos 4min49s – e baixar aquele mesmo meio grau, dando a impressão de esticar ainda mais o tempo (só a impressão, porque Gene Ramey e Jo Jones fingem que não é com eles, mas estão atentos). Então, aos 7min07s, acontece uma das coisas mais extraordinárias: o normalmente quente, tagarela e agudo Roy Eldridge começa a sussurrar uma conversinha mole, mas cheia de malícia, à qual todos logo se juntam. Quando acaba, é impossível a gente não se sentir melhor, muito melhor.

Sim, o “irregular” Lester Young, que estaria no “ocaso de sua existência musical”, quase “acabado”, gravou uma dúzia de obras primas em dois dias. Naqueles dias isso era comum, dirão os mais espertos, porque não tinha essa coisa de gravar todo mundo separado, um em cada canto, nem tanta pós-produção, que faz passar os muitos pedacinhos de som por filtros, softwares e quejandos, para depois misturar tudo de uma maneira que toque nas caixinhas bluetooth, nos fones extra-bass e onde mais chegar o streaming. Sim, não tinha. Só que não é essa a questão. Com a turma de Lester Young, o que fazia diferença não era o sistema de produção, nem as características do business: era a qualidade de uma grande arte e dos seus inesgotáveis artistas.

* Norberto Flach é advogado, professor e conselheiro da AmaJazz

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