Uma longa noite de loucuras com Pharoah Sanders

João Carlos Rodrigues relembra uma viagem de muitas horas que começou de tarde, varou a noite cristalina e acabou num esplendoroso nascer do sol

Para ser lido ao som de Pharoah Sanders em The Creator has a Master Plan

Arte: Gilmar Fraga

Morreu Pharoah Sanders, um dos grandes do saxofone, pra lá dos 80 anos. Esse foi grande desde sua colaboração com John Coltrane e depois com a viúva deste, Alice, a maior figura feminina do jazz instrumental. Criaram o chamado spiritual jazz, absorvendo influências árabes mas principalmente indianas e não apenas musicais, mas também filosóficas e religiosas. Quando ouvi esses músicos pela primeira vez o que mais me impressionou foi o sensualismo evidente – por exemplo de A Love Supreme (Coltrane) e A Journey to Satchidananda (Alice) – que a meu ver batia de frente com suas pretensões religiosas. Esse entendimento me chegou através de Pharoah, que depois da morte de Coltrane iniciou a carreira solo e gravou mais de 30 discos.

Isso tem uma historinha interessante. Em 1971 fui convidado por minha amicíssima Letícia Moreira de Souza (uma escritora e cineasta interessante cuja curta obra dispersa se perdeu) a visitá-la, pois, “tinha uma surpresa”, que afinal era o Glauber Rocha, com quem dividia suas atenções com a bela Anjinha (hoje Angela Ro-Ro, na época ainda não era cantora). Cinéfilo de carteirinha ficamos logo amigos e como ele se preparava para deixar o Brasil autoexilado decidimos fazer uma despedida lisérgica na Praia de Grumari, então de difícil acesso, portanto deserta. 

Tenho a impressão de que foi a primeira viagem dele, mas não tenho certeza. Os ácidos foram dois orange sunshine divididos fraternalmente, que eu tinha guardado para uma ocasião especial. Viagem de muitas horas que começou de tarde, varou a noite cristalina e acabou num esplendoroso nascer do sol. Angela acho que estava com dor de dente e ficou curtindo quieta a maior parte do tempo. Mas eu, Leticia e Glauber desbundamos total – tiramos a roupa, corremos e nadamos nus, acendemos fogueira. Cores deslumbrantes, sons esterofônicos, brisas deliciosas, céu estrelado, lua cheia. Hedonismo total. Mãe Natureza no seu apogeu. Desbunde total. Mas antes que alguém pergunte vou logo dizendo: sem sexo. 

E o que tem Pharoah Sanders a ver com isso? Tudo a ver. Numa vitrolinha de pilha tocava e retocava o seu disco Karma onde temos a faixa The Creator has a Master Plan onde em 30 minutos ele constrói e desconstrói uma visão mística do universo com dissonâncias do free-jazz e as sutilezas do orientalismo. Um mantra é repetido periodicamente na voz de Leon Thomas – “The Creator has a master plan/peace and happiness/for every man”. Imaginem isso na situação acima descrita. Eu agnóstico percebi ali o mistério do mundo, como o aleph do Borges e a máquina do mundo do Drummond. Um rito de iniciação.

Hoje 51 anos depois só restamos Angela e eu, que pouco nos vemos pessoalmente, mas continuamos fidelíssimos um ao outro forever. E a lembrança de uma noite inesquecível que mudou nossas vidas. Grande Pharoah Sanders, eu lhe agradeço pela sua obra prima e por ter me ajudado a abrir ainda mais as minhas portas da percepção. Axé! 

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