Gilmar Fraga me chamou e juntos lembramos uma fase das minhas longas conversas com Bebeto Alves
Para ser lido ao som de Bebeto Alves em Mais uma Canção

Bebeto Alves andava numa fase de paradoxos. Cantava o homem invisível ao mesmo tempo que se mostrava mais visível do que nunca, escancarando seu pensamento, suas ideias, seus sons e sua intimidade num documentário (Mais uma Canção) do qual ele era o protagonista e eu, um dos roteiristas. Falava nas suas raízes em Uruguaiana (questão sempre presente na sua obra e que com o passar dos anos adquire uma força cada vez maior) ao mesmo tempo que havia empreendido recentemente e uma viagem pelo Marrocos e pela Espanha em busca das origens da sua musicalidade. Foi um roteiro de revelações, de espantos e de descobertas. Ele também falava em compor menos, em deixar se surpreender pela música (“A música não está dentro de mim. Muitas vezes sou eu que estou dentro dela”, ensinava), mas num mesmo momento – de coragem e de audácia – colocava quatro discos novos no mercado.
Eu já conhecia Bebeto desde meados dos anos 1990. Na verdade, a figura pública, óbvio, eu conhecia bem antes. O Bebeto do MPB Shell 80, o de Pegadas, o que caminhava pela João Telles – a rua em que eu morava – andando pelo Círculo Israelita, o Ocidente e a Coolmeia.
Já o havia entrevistado algumas vezes, mas a essência do Bebeto inquieto e andarilho eu fui conhecer mais proximamente em duas gélidas noites de julho de 2009, quando estive no Teatro de Arena para a gravação do disco ao vivo, Bebeto Alves e os Blackbagual (Ao Vivo). O álbum cumpria um longo ciclo. Foi ali, no mesmo teatro localizado nas escadarias da Borges de Medeiros, que Bebeto soltou seus primeiros acordes nos anos 1970. Era a fase em que a música gaúcha dava sinais de crescimento, misturando influências interioranas e urbanas, revelando contemporâneos de Bebeto como Nelson Coelho de Castro, Nando D’Ávila, Cláudio Vera Cruz e Gelson Oliveira – além dos já veteranos Carlinhos Hartlieb e Raul Ellwanger – e sinalizando para o fato de que finalmente o Rio Grande do Sul seria ouvido no resto do país.
Como uma reafirmação dos melhores ideais que esta geração representou, Bebeto construiu um disco que traz um repertório irrepreensível e que revisita todas as fases de um artista que sempre soube estar em ebulição e interpretar seu tempo. Estão lá marcas da estrada como Flash (canção nascida de uma parceria com o falecido Joe Eutanázia que de certa forma mostrava o otimismo de Bebeto com o novo país que surgia com a Nova República), Depois da Chuva, Kraft!… Mesmo (sua primeira e única participação no festival MPB Shell), Mais uma Canção, Notícia Urgente (sua canção do exílio, do tempo que morou no Rio de Janeiro) e Pegadas, sua assinatura musical e talvez a sua composição que melhor reflita seu espírito beatnik. Produzido pelo eterno parceiro Marcelo Corsetti, o disco ao vivo conta ainda com as participações de Jimi Joe (outro que estava nas pioneiras noites do Teatro de Arena, em Sandina e Pegadas) e Oly Jr., que com sua mistura de milonga e blues de certa maneira complementa o trabalho que vem sendo desenvolvido por Bebeto.
Na época, entre 2009 e 2010, convivemos bastante. Ele, então com 55 anos, depois de muitas e boas (e algumas nem tão boas), mostrava-se, além de paradoxal, mais sereno. Pai e avô, dividindo-se entre Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Leopoldo – onde exercia outra de suas facetas, a de gestor público –, Bebeto conseguia rir sem amargura das loucuras que o mercado fonográfico aprontava na década de 1980. A receita, segundo ele, era um certo desapego, um ouvido mais crítico e uma certeza de que o futuro já existe. “Durante muito tempo tive uma saudade do futuro. Mas quem não teve?”, questionava Bebeto, para em seguida responder que seu objetivo maior atualmente era ficar velho “Estou atrás de uma fonte da juventude às avessas”, explicava.
Nessa velhice tão aguardada, a música teria que surpreendê-lo. E, naquele momento, o que mais surpreendia Bebeto eram as artes plásticas em geral e a fotografia em particular. Ou seja, Bebeto estava interessado nas imagens e sua música se alimentava disso. Se antes Bebeto fazia manifestos, com letras longas e discursivas, naquele período, com os sons, Bebeto compunha retratos. Podiam ser 3×4 ou postais ou até mesmo imensas panorâmicas. Mas a música não podia mais estar separada da imagem. E como síntese desses tempos que o artista vivia, entre o presente e o futuro, entre o amadurecimento e a velhice, entre o som e a imagem, poderia se concluir que os olhos de Bebeto estavam em dois pontos diametralmente opostos – um no microscópio, outro no telescópio. Ou como já refletia na sua melhor composição, a que mais resumia seu espírito desbravador, era preciso entender “para toda e qualquer falta de possibilidade tem que haver reação”.
Em abril de 2020, no começo da pandemia, Bebeto nos deu a honra de deixar sua marca também aqui, na AmaJazz:

Bela homenagem. Excelente texto. E vamos perdendo pessoas pelo caminho… mas como disse o Buda o caminho é mais importante do que o destino. E eu diria: o caminho é o destino Luz 🕯Paz 🕊
Lindas memórias. Sob medida em se tratando de Bebeto. Materializas encontros ricos de criação e afinidade cultural. Parabéns cara
Soy Hugo Acosta, conocí a Bebeto en Uruguayana en los años setenta. Me pone muy feliz este homenaje. Gracias