Mario Sergio Conti analisa o fato de Assis Valente ter sobrevivido a tantas tentativas de suicídio, e à morte em 1958, ao tomar veneno para rato, e comprova que algo na sua obra continua viva
Para ser lido ao som de Novos Baianos em Brasil Pandeiro

(Foto: Domínio público/Wikimedia Commons)
O texto musicado precedeu a prosa. Seja por meio da métrica, de rimas ou de assonâncias, seja pela injeção do som propriamente dito, o canto é elemento capital da fala repetida. Na ausência da escrita, os recursos musicais serviam de suporte para o discurso, auxiliavam a sua lembrança.
A canção, na qual cabem o samba e a marchinha, é resquício do tempo analfabeto em que as pessoas davam maior importância ao falado do que ao escrito. Por isso, as palavras cantadas perdem toda a graça quando apartadas da sua música, apreendidas em papel ou na tela do computador. Vejam-se os versos de Alegria, de Assis Valente: “Minha gente era triste, amargurada/Inventou a batucada/Pra deixar de padecer/Salve o prazer, salve o prazer”.
Eles são pueris, não encerram qualquer verdade. Acrescidos da sua música, contudo, eles retornam à vida e celebram o prazer de estar junto e cantar. Alegria sublima: é uma maneira de escapar, na imaginação e nos minutos que dura, do amargor e da tristeza do real. A canção alcança então a alegria, o seu título.
O alcance não é para qualquer um. É preciso conhecer a canção, lembrar-se de tê-la entoado antes, em outros carnavais, em uníssono com outras pessoas. A canção pressupõe a compreensão coletiva, nascida no passado e atualizada no presente. Implica na ascendência do som sobre o escrito, das palavras soltas no ar, entre todos, sobre a leitura solitária da página inerte.
Várias das músicas de Assis Valente tematizam esse valor da canção, seu condão de unir corações e harmonizar o júbilo. O Brasil, em Recenseamento: “Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia/Um conjunto de harmonia que não tem rival”.
Nos seus primeiros sucessos – Good Bye, Boy e Tem Francesa no Morro –, o compositor comemorou a superioridade nacional, posto que poética, sobre as línguas do poder, o francês e o inglês. E depois conclamou a música a ser a arma nacional por excelência: “Brasil, esquentai vossos pandeiros/Iluminai os terreiros que nós queremos sambar”.
Essa dimensão artística e nacional é o substrato evanescente de Quem Samba tem Alegria, a mais completa biografia de Assis Valente, escrita por Gonçalo Junior e lançada em 2014 pela Civilização Brasileira.
Substrato: o fato de Assis Valente ter sobrevivido a tantas tentativas de suicídio, e à morte em 1958 (ao tomar veneno para rato), a ponto de justificar um livro de 650 páginas, comprova que algo na sua obra continua viva. Evanescente: a biografia é uma concessão ao gosto dominante; ela estima mais os dramas de um morto do que a graça das suas canções e o seu lugar na música nacional.
O gênero biográfico impõe esses limites, mas nem sempre. Em Carmen, por exemplo, Ruy Castro relata três etapas do estabelecimento da indústria cultural: o rádio no Brasil; os musicais na costa leste americana; e o cinema de Hollywood, na oeste. Integrando uma coisa na outra, num mesmo movimento ele analisa três décadas da música popular e conta a vida de Carmen Miranda. Importam menos os trejeitos da cantora (aliás, presentes no livro) do que a sua arte e os processos em que ela se insere.
Em Quem Samba tem Alegria predominam as dívidas de Assis Valente, o seu uso da maconha e da cocaína, as suas neuroses suicidas, o seu amor frustrado por Carmen Miranda. A ênfase no subjetivo atravessa o samba a cada página, apesar de serem escassos, de fato, os traços decisivos da sua personalidade. A arte, a indústria e a História são sombras distantes, e a formação nacional nem dá o ar da graça.
Assis Valente foi inventor e mestre, bastardo mestiço num meio conservador e racista. Ele renasceu uma vez, em 1965, quando um erudito, o tradutor e crítico de literatura José Lino Grünewald, escreveu um ensaio sobre a sua criatividade. E renasceu em plenitude na década seguinte, quando João Gilberto ensinou Brasil Pandeiro aos Novos Baianos, que a registram num grande disco, Acabou Chorare.
Desde então, a arte de Assis Valente permaneceu viva nas raras apresentações de João Gilberto, que nunca o gravou. Um dos momentos maiores da nacionalidade é a sua interpretação de Boas Festas. Aos poucos, porém, ele parou de cantar e tocar, no mesmo período em que a formação nacional entrava em parafuso.
É bom que exista a biografia de Gonçalo Júnior: Quem Samba tem Alegria é obra claramente movida pelo afeto de seu autor pelo compositor. Mas, por si só, ela não pode o impossível: fazer com que a obra de Assis Valente nos fale a todos. Seria imperioso, para tanto, que muitas coisas mudassem na raiz, nas determinações da própria vida e de nossa história. Seria preciso que João Gilberto cantasse.