Joyce Moreno esteve há 12 anos com Yusef Lateef e agora, no ano que ele completaria 100 anos, estreia na AmaJazz fazendo, a nosso pedido, um exercício de memória como forma de homenagear o grande músico
Para ser lido ao som de Yusef Lateef em Yesterdays

O encontro foi durante as aulas e os workshops na Summer Session Clinic em Vrå, na Dinamarca: ao meu lado estavam o trompetista e vocalista norueguês Per Jørgensen; no contrabaixo, uma lenda do jazz dos anos 70, membro fundador do Weather Report, o tcheco Miroslav Vitous; na bateria, Jeff “Tain” Watts, que dispensa apresentações, o jovem organista de Nova York Sam Yahel, e o inacreditável flautista e saxofonista Yusef Lateef, com seu assistente, o percussionista Adam Rudolph.
Esta foi a noite do concerto que nós, professores, fizemos para os alunos. Fiquei meio com um pé atrás, de início: tantos jazzistas juntos haveriam de querer tocar jazz norte-americano, donde eu, brasileira, estaria meio deslocada. Logo na chegada, Per, o norueguês, me procurou: tinha as mesmas preocupações que eu, e sugeriu que nos apresentássemos juntos num duo à parte, na abertura do concerto. Como o trabalho dele é todo desenvolvido a partir de música orgânica e criativa, foi fácil acharmos um denominador comum, e rapidamente criamos um formato para a boa e velha Upa Neguinho, que ele não conhecia, mas de quem ficou íntimo em minutos.
Só que na reunião dos professores para combinarmos o repertório do concerto, surpresa: nenhum deles queria tocar standards de jazz. A começar por Yusef, que foi logo dizendo: “I don’t do standards”. Na verdade, a lista das coisas que ele não fazia era enorme, pois tratava-se de um muçulmano ferrenho, da velha escola – que, entre outras estranhezas, não apertava a mão de mulher, para não tocar em possíveis “impurezas”, o que me deixou bastante constrangida no primeiro encontro, ao ficar com a mão abanando diante dele. Depois entendi que era assim mesmo e fui em frente. Mas que é esquisito, é, com todo respeito…
Enfim, Yusef não queria tocar standards, Miroslav não queria tocar walking bass, nada que lembrasse o jazz americano da forma como é conhecido, e os professores mais novos, Yahel e Watts, também disseram que não. Decidiu-se, portanto, que o concerto seria free.
Free jazz me dá arrepios: respeitosamente, detesto – quase tanto quanto detesto fusion – e nunca consegui escutar até o fim um disco de Ornette Coleman. A única vez em que estive num concerto dele, saí na metade, pois sempre chega um momento em que simplesmente acaba o assunto e tudo fica sem sentido, por maior que seja a boa vontade do ouvinte, e o que era para ser música livre vira uma espécie de masturbação coletiva. Com todo respeito, de novo.
Mas quem está na chuva tem de se molhar, e lá fui eu participar de uma free session pela primeira vez na vida. Tá bom, pela primeira vez em público, pelo menos, pois é claro que em ensaios e brincadeiras caseiras rola de tudo. Mas com plateia – e plateia de músicos, ainda por cima, pois nesses workshops dinamarqueses os alunos são todos profissionais – foi a primeira vez mesmo.
E não é que deu certo? Acabou rolando música de alta voltagem criativa, e a voz usada como instrumento foi uma boa ferramenta para lidar com isso. Já no finalzinho, quando parecia que iria desandar o bolo, Watts, esperto, puxou uma levada rítmica que imediatamente me remeteu às levadas daqui, e foi a minha deixa para que o violão entrasse em cena – e o que era free acabou mesmo em baião, para alegria geral. Cada um dá o que tem… e viva o Brasil!
PS: Depois de passar toda aquela semana “explicando” Dorival Caymmi aos meus alunos escandinavos, fazendo analogias entre a música dele e a de Debussy, e demonstrando que sem Dorival não haveria João Gilberto, recebi naquele sábado a notícia da morte de Caymmi. A comoção foi enorme, e muita gente que tinha aprendido a entendê-lo e amá-lo pela primeira vez chorou comigo. Eclipse da lua no interior da Dinamarca, tristeza sem fim.