Daisson Flach conta como uma caminhada acabou numa agradável surpresa jazzística
Para ler ao som de Ron Carter com The Shadow of your Smile

Em 1990, caminhava pelo Village, em Nova York, logo após o almoço, quando vi uma placa, posta na entrada de um bar e grill, de nome Knickerbocker, do qual nunca ouvira falar. Nela estava escrito: “Good food, good music. Tonight, Mr. Ron Carter”.
Congelei. Bom e conveniente demais para ser verdade. Nada havia visto no lendário Village Voice, tampouco no Time Out, que eram, naquele tempo pré-internet, a fonte quente de informação do que de rolava.
O lugar estava fechado, mas dava para ver um sonolento cidadão limpando o balcão e organizando coisas. Bati na porta envidraçada, o homem veio atender.
– Com licença, senhor, esse Ron Carter da placa é AQUELE Ron Carter?
– Você conhece algum outro Ron Carter?
– Não, só AQULE mesmo.
– Então você tem sua resposta.
O cara estava sendo sarcástico, logo percebi, com o mau-humor de quem está polindo algumas dezenas de cálices em uma tarde tediosa, Em nada me abalei. Apesar do sonolento sarcasmo, o cara estava me atendendo com o lugar fechado. Prossegui em minha investigação, esperando o momento em que viria alguma má notícia.
– É preciso reservar?
– Sim, essencial.
– Como devo fazer?
– Falando comigo.
(putz, tenho que ser cuidadoso, qualquer passo em falso…)
– E ainda há alguma mesa disponível?
– Como você pode ver, o lugar não está muito cheio…
(sorri, deixando claro que já identificara o sarcasmo do amigo – sim, porque ele, sarcástico ou não, era, naquele momento, meu melhor amigo)
– Então posso reservar agora?
– Seria mais fácil do que à noite, quando todas as mesas estarão ocupadas… (o sarcástico não dava colher)
– Quais estão livres?
Nesse momento, ele nem respondeu, apenas abriu os braços em direção àquela sala de ausentes. Eu, que já tinha entrado no clima, comecei a andar entre as mesas, como se fosse tarefa difícil. Ele observava escorado na coluna, com o rosto vazio. Naturalmente, escolhi aquela que estava a menos de um metro do palco, quase dentro do peculiar trio, contrabaixo, piano e vibrafone.
Tudo acertado, eu ia saindo com a cara mais satisfeita do mundo quando, pela primeira vez sorrindo, agora mais divertido do que sarcástico, ele perguntou:
– Quer deixar o vinho escolhido?
– Não, obrigado, me garanta apenas taças bem polidas.
Ele, finalmente, desprendeu a contida gargalhada. O resto nem preciso contar, pois, afinal de contas, o Ron Carter era, de fato, AQUELE Ron Carter.
