Documentário recupera as sete décadas de dedicação à música de Quincy Jones, o maior símbolo da força do showbiz mundial
Para ser lido ao som de Quincy Jones em Summer in the City

A câmera desliza pela imensa parede. Lentamente vai mostrando: dezenas de capas de discos, fotos autografadas, bilhetes, cartas, diplomas, documentos, recordações. Todos os personagens são facilmente identificáveis: Stevie Wonder, Count Basie, Dizzy Gillespie, Michael Jackson, Frank Sinatra, Paul McCartney, Dinah Washington, Duke Ellington… Em meio a tanta informação, Dr Dre, rapper, produtor musical e responsável por conduzir a entrevista que virá a seguir, se espanta com a quantidade de registros e de homenagens – são 27 Grammys, mais de mil composições, mais de 300 álbuns gravados “Nossa!”, diz ele, para logo em seguida apresentar o tema do documentário e dono da casa onde fica a parede: Quincy Jones.
O superlativo produtor, compositor, arranjador e trompetista é, aos 85 anos, o maior símbolo da força do showbiz mundial. De Los Angeles, ele conduz um império artístico que influencia a produção musical de todo o planeta. “Em cada estágio de sua notável carreira, ele foi o primeiro. Foi alguém que passou por aquela porta antes de todo mundo. Isso dá às pessoas atrás dele uma enorme confiança”, diz, lá pela metade do documentário, o ex-presidente Barack Obama, um homem que sabe que muito da sua chegada à Casa Branca passa pelo pioneirismo de Quincy.
O documentário, dirigido por Rashida, uma das seis filhas de Quincy (ele ainda tem um filho homem, que carrega o mesmo nome do pai), se estrutura em memórias e fatos atuais. Quincy recorda a infância pobre em Chicago, as crises de loucura da mãe (internada e levada de casa numa camisa de força), a dificuldade para conseguir comida e as barreiras que precisou romper.
Não é um homem amargurado. Pelo contrário. Demonstra grande felicidade e gratidão, parece ser gregário com parentes e amigos, agradece constantemente a Deus pelos sucessos alcançados e aproveita bastante a vida – até das internações hospitalares parece tirar graça.
Há anos, Quincy quase morreu devido a um aneurisma cerebral que exigiu duas neurocirurgias. Ele se recuperou, apesar de uma chance em 10 de sobrevivência, mas ficou proibido de se aproximar de duas paixões: o trompete, pelo problemas que poderiam ser causados pela pressão, e as bebidas alcoólicas. Essas, aliás, o levaram a um coma diabético que quase lhe tiraram a vida aos 82 anos – relato que marca o início do documentário.
Das belas recordações que juntou em mais de sete décadas de atividade musical, Quincy lembra de Duke Ellington e Lionel Hampton, com quem começou a excursionar. Ri dos arranjos que fazia por 12 dólares – está tudo anotado num caderno – mas, ao mesmo tempo, tem certeza de que ter aceito aqueles trabalhos lhe garantiram visibilidade e convite para novos trabalhos. Depois, nunca mais seria mal remunerado.
No início da carreira, Quincy também foi favorecido pela proximidade com dois astros em ascensão, Ray Charles e Dinah Washington, que seria decisiva para sua entrada na gravadora Mercury. Ainda não tinha 30 anos quando resolveu dar uma guinada na carreira. Mudou-se para Paris e matriculou-se como aluno da pianista Nadia Boulanger, figura importante nas carreiras de Igor Stravinsky, Leonard Bernstein e Astor Piazzolla.
“Nadia Boulanger costumava me dizer: ‘Quincy, há apenas 12 notas. E até que Deus nos dê 13, eu quero que você saiba o que todo mundo fez com aqueles 12’. Bach, Beethoven, Bo Diddley, todo mundo… são as mesmas 12 notas. Não é incrível? É tudo o que temos, e cabe a você criar seu próprio som único através de uma combinação de ritmo, harmonia e melodia. Como a música está em constante mudança, é impossível obter o mesmo resultado duas vezes, e estou sempre fascinado por ouvir os diferentes resultados que você pode criar com apenas 12 notas.”
Além dos ensinamentos de Madame Boulanger, a temporada francesa seria fundamental para Quincy, principalmente por encorajá-lo a organizar um grupo e sair tocando pela Europa. A decisão seria ótima como experiência porém um fracasso como negócio, deixando Quincy com uma dívida de mais de 100 mil dólares. Como a derrota também inspira, Quincy decide voltar aos Estados Unidos e enveredar pela música pop.
Sua primeira aposta foi Lesley Gore, uma garota de 16 anos de Nova Jersey. Foi um sucesso absoluto. Quincy se recuperou financeiramente e passou a adotar uma estratégia que o acompanharia pelo resto da vida: a capacidade de ouvir o máximo de composições para só então, a partir da imensa quantidade de material avaliado, começar a podar até chegar ao número ideal que merecesse ser gravado.
O grande salto viria com Sinatra, fascinado pelo trabalho que Quincy já desenvolvera na orquestra de Count Basie. Quincy adotou Las Vegas como lar – contando com o empenho de Sinatra para combater o racismo que ainda impedia que os músicos negros frequentassem hotéis e cassinos senão como empregados – e deu uma nova dimensão ao seu trabalho. Logo depois, Los Angeles seria o caminho natural, com Quincy atraído pelo fabuloso mercado das trilhas sonoras para cinema e TV. Na Califórnia, daria um salto ainda maior ao se aproximar de Michael Jackson e produzir Thriller, o maior fenômeno da história da indústria fonográfica.
Como que fechando um ciclo, ao final do documentário, Quincy visita um museu dedicado à cultura afro-americana que seria inaugurado com em cerimônia com direção musical sob sua responsabilidade. Chegando ao local, numa referência direta à parede de fotos do início, Quincy vai se emocionando com o acervo, reconhecendo velhos amigos. Parceiros não de uma vida – mas de várias.
Texto ótimo! Parabéns!