Pedro Gonzaga* lembra o crime que está por trás da poesia
o apartamento estava sempre aberto
nunca faltava a boa comida sulista
e logo músicos esfomeados ali chegavam
pois além dos feijões e dos assados
havia bons discos e a língua afiada de helen
a dona daquele pequeno lugar
dos instrumentos do jazz o trompete
é por certo o mais brilhante
e também o mais insuportável
ora metalicamente intenso
como as piores sopranos
mas ora bronze cantante
como os melhores serafins
e talvez apenas ao comando de lee
uma máquina de aspereza e doçura
mas era então nova iorque
e atrás de cada gravação imortal
estava uma agulha e um beco
nos intervalos das noites infinitas
enquanto o inverno varria tudo
inclusive o sucesso e as roupas
do rapaz que apareceu no casa de helen
que o reergueria para de novo limpo
voltar a fazê-lo lee morgan mais uma vez
dando-lhe uma vida que anos depois
num estrondo feito o golpe errado
de um baterista no aro da caixa
tomaria com um tiro certeiro
enquanto a neve cobria as ruas
com uma camada de trinta centímetros
suficiente para ter escondido o corpo
noutra noite de mais suave desgraça
* Pedro Gonzaga é poeta, professor e discípulo de Dexter Gordon