Juarez Fonseca recupera de seus arquivos implacáveis essa conversa que ele teve, há 30 anos, com Braguinha, um dos grandes compositores brasileiros
Para ser lido ao som de Dick Farney em Copacabana

Estamos em janeiro de 1995 e já começou a contagem regressiva para o Carnaval. Nos salões, como vem acontecendo ao longo dos últimos 60 anos, serão cantadas músicas de João de Barro, o Braguinha – As Pastorinhas, Balancê, Anda Luzia, Chiquita Bacana, Escravos de Jó, Vai Com Jeito, Pirata da Perna de Pau, Touradas em Madri… Ele é o maior compositor de Carnaval de todos os tempos. Mas não apenas isso. Assina clássicos como Mulher Rendeira, A Saudade Mata a Gente, as planetárias Carinhoso, em parceria com Pixinguinha, e Copacabana, primeira homenagem à famosa praia, feita com Alberto Ribeiro. Além desses dois, Braguinha compôs com Noel Rosa, Lamartine Babo, Almirante, Zequinha de Abreu. É um senhor letrista. Fez ainda fez grandes versões, como as do bolero Aqueles Olhos Verdes, o tango Meu Buenos Aires Querido, obra-prima de Chaplin Luzes da Ribalta. Sem falar em canções juninas, como Capelinha de Melão. São mais de 500 músicas gravadas. Aos 87 anos (parece bem menos), casado há 54 com dona Astréa, uma filha, três netos e quatro bisnetos, o carioca Carlos Alberto Ferreira Braga vive em um confortável apartamento em Copacabana. No meio de uma ampla sala com janelas que se abrem para a pacata praça Cardeal Arcoverde, dorme um piano de cor creme. Nas paredes, quadros com paisagens, naturezas mortas e até arte chinesa kitsch. Foi nesse ambiente que Braguinha me recebeu, depois de uma combinação por telefone (quem me passou o número foi o amigo jornalista Roberto Moura, que conheci na Califórnia da Canção Nativa, em Uruguaiana). Aqui está um sujeito elétrico, atento a tudo e feliz. Pra começo de conversa, dispensou o tratamento de “senhor”.
Quais são suas três músicas de maior sucesso? Continuam rendendo bons direitos autorais?
Regulares… De acordo com o que se cobra no Brasil, é bom. As Pastorinhas, parceria com Noel Rosa, de 1932, até hoje é tocada, assim como Carinhoso e Copacabana, que são do início dos anos 1940.
Quantas gravações tem Carinhoso?
Pelos meus registros, são mais de 100. Orlando Silva foi o primeiro. Depois tem Elis Regina, Trio Los Panchos, Altamiro Carrilho, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio, Baden Powell, Bené Nunes, Paul Mauriat… São muitos. Tenho mais ou menos 500 músicas gravadas.
Continua compondo?
Nããã… Uma vez ou outra, quando me vem uma ideia. A última que eu fiz chama-se A Vida Não Tem Bis. O coro é assim: [canta] “Vai, vai, vai, a vida não tem bis/ Agarra tua estrela/ O que importa é ser feliz”.
Você sempre foi mais letrista?
Faço as duas coisas. Mas na verdade, sou mais letrista, porque nunca fiz música para versos de alguém, e fiz muitos versos para músicas de outros.
Qual a diferença entre o mercado para a música brasileira naquela época e o atual?
Cada geração muda bastante o seu modo de fazer música e gostar de música. Mas eu não tenho queixas, porque as músicas minhas que se vendiam naquele tempo se vendem hoje também, ou se tocam, pelo menos. São bem executadas e o direito de execução é que é o melhor para nós.
Quando é que saiu o último disco só com obras suas?
Foi um disco duplo, com músicas minhas e de Cláudio Santoro, distribuído como brinde da Shell em 1985.
Já deveria ter sido feito um disco seu, com distribuição normal. Não pensa nisso?
Já perdi aquela ânsia, aquele desejo de antes, quando procurava as gravadoras, oferecia músicas. Agora não, agora… Mas elas continuam a ser gravadas. Copacabana, por exemplo, volta e meia é gravada aqui e até no estrangeiro. Com Carinhoso, a mesma coisa. É assim e estou satisfeito.
O que você acha de Copacabana ser considerada uma das precursoras da bossa nova? Foi feita quase 20 anos antes e gravada por Dick Farney, Bing Crosby…
Eu fiquei muito satisfeito de ter feito essa música, que agradou, e se tornou justamente a música representante da nossa praia maior.
Fala-se muito que o Brasil é um país sem memória, que esquece fácil os seus artistas. Concorda com isso?
Não. Em todos os lugares do mundo há coisas que as pessoas guardam e outras coisas que esquecem, porque há coisas que interessam e coisas que não interessam. Guardar para quê? No caso da música, as que o povo gostou mais ele guardou, as ruins ele esqueceu, jogou fora e ninguém mais se lembra delas.
Entre os artistas de hoje, quais você acha que serão guardados para o futuro?
Há muita gente boa. Caetano Veloso, Roberto Carlos, Tom Jobim… Mas eu não gosto de citar nomes, pois se esquecer de algum ele pode ficar zangado comigo.
Ainda tem contato com os seus contemporâneos da música dos anos 30, 40?
Já se foram quase todos. O único que está sempre comigo é o Luís Antonio. Os outros já disseram adeus…
E você está em ótima forma…
Me sinto bem, não tenho nenhuma doença permanente, só algum resfriado de vez em quando.
Como é seu cotidiano?
Muito bom. Tenho uma família muito amiga e não tenho queixas da vida. Durante o dia caminho, converso com amigos, vou até a Praça Cardeal Arcoverde, vou ver o mar, adoro o mar. Leio sempre o jornal, de vez em quando leio algum livro.
Você está intimamente ligado à história do Carnaval brasileiro. Como eram os carnavais em sua juventude?
Havia os desfiles, as brincadeiras de rua, brincava-se inclusive nos bondes, a gente ficava nos estribos dos bondes cantando. Mas sou feliz porque hoje em todos os bailes tocam muito as minhas músicas antigas. A diferença entre o Carnaval de hoje e o daquela época é a mesma que há entre todas as coisas. Tudo mudou, o Carnaval também.
O mundo mudou para melhor ou para pior?
Depende da pessoa, depende da sorte da pessoa. Para mim o mundo está sempre melhor, não tenho queixas da vida. Isto é, só tenho uma queixa: de uma menina que me enganou. [Canta] “Eu não sei bem por que/ Tantas queixas da vida/ Se há dias de sol/ Alegrando os caminhos/ Se no mar anda sempre/ Uma vela perdida/ Se há no céu tanta estrela!/ Se há cantigas nos ninhos/ Se a chuva que cai/ Refloresce os canteiros/ Se renascem as rosas/ Que o vento esfolhou/ Se há cigarras que cantam/ Os dias inteiros/ Se há beleza em tudo/ O que Deus nos doou/ Se eu morrer amanhã / Eu lhe juro, querida/ Que você é a única mágoa/ Que eu levo da vida”. Viu que paulada que eu dei nela? [risos]
Você gosta de contar histórias? Conta histórias para os netos?
Às vezes sim. Tem aí as minhas historinhas infantis todas gravadas [Braguinha produziu para a gravadora Continental, nos anos 1960-1970, a série infantil Disquinho]. Eu boto um disco e eles ouvem. Mas lembrar histórias do passado depende do momento, do acaso, das pessoas que estão junto. Deixa ver se eu lembro uma coisa… Uma vez um amigo me apresentou o cantor Gastão Formenti, que também era pintor: “Te apresento aqui o pintor Gastão Formenti”. “Ah, o senhor também pinta?”. Ele respondeu: “Não, também canto”… Ele se considerava mais pintor que cantor. Era um cantor muito bom e um pintor muito bom também. Tenho aqui uns quadros dele.
Dizem que você nunca foi boêmio.
Naturalmente eu não era tão sossegado como hoje, me divertia. Mas nunca fui mesmo boêmio, assim como Noel.
Conviveu com Noel?
Muito, a mãe do Noel, Dona Marta, foi professora de minhas irmãs. Nós morávamos perto, lá em Vila Isabel. Eu morava na Rua Souza Franco e ele na Rua Teodoro da Silva. Éramos muito amigos.
De onde veio o apelido João de Barro?
Naquele tempo, cantor de samba, sambista, essas coisas, era sinônimo de malandro, vagabundo, e meu pai não gostava do nome dele ligado a isso. Então eu tirei o Braga e botei o João de Barro. Como artista, sempre fui João de Barro. Depois os amigos começaram a me chamar de Braguinha e ficou Braguinha também. Meu nome verdadeiro é Carlos Alberto Ferreira Braga.
Naquela época o pessoal da música vivia mais na Lapa, na Tijuca, não é? Mas você de tornou um cronista da praia também.
Copacabana foi crescendo e se desenvolvendo. As meninas de biquíni eram uma atração… Eu tenho músicas falando delas. Primeiro foi a Garota St. Tropez, com o umbiguinho de fora. [Canta] “Olá-lá, olá-lá, você é mais você/ Com o umbiguinho de fora/ Garota, de St. Tropez/ Laranja da Bahia tem o umbiguinho de fora/ Por que é que você, Maria/ Escondeu o seu até agora?”. Depois foi Garota Biquíni: “Garota biquíni, de Copacabana/ Espetacular/ Teu biquininho tá/ Tá de matar/ Teu biquinininho é a sensação/ Um palmo de serpentina/ Dois confetes de salão”. Depois, quando ela tirou os confetes, ficou a Garota Monoquíni: “A garota monoquíni/ Que beleza de menina/ Foi à praia sem confetes/ Só levou a serpentina”. Aí ela foi presa: “Seu delegado/ Solte a menina/ Que foi à praia/ De serpentina/ Se fosse feia/ Tava indecente/ Mas sendo boa. tá/ Tá inocente”.
E aquele verso novo que você fez para a Yes, Nós Temos Banana?
Fiz o seguinte verso: [canta] “O meu dinheiro sumiu daqui/ Vão buscar outro no FMI/ Mas se pagar/ Eu não puder/ Bananas para quem quiser”.
Como é que você fazia para estar sempre tão atualizado, como mostram as suas marchinhas?
A cada ano, eu procurava fazer alguma coisa que falasse dos fatos daquele ano. Aos poucos fui colecionando, colecionando e inventei uma porção de coisas.
E em nenhum momento você revela algum tipo de preconceito…
Nunca tive preconceitos. Sempre procurei viver a minha vida normalmente, com os amigos, as coisas que aconteciam. Nunca busquei coisas extraordinárias, diferentes. Prefiro a minha vidinha sossegada. A gente tem que viver o melhor que pode essa vida mesmo, porque não tem outra.
Não acredita na vida eterna?
Mas é esta! Não tem outra.
Morreu, acabou?
Não, é esta vida que continua de outra forma.
Você é religioso?
Acredito em Deus. E peço todo o dia a ele que me ensine a verdade e que me dê forças para segui-la. Porque nem sempre a gente tem força de seguir a verdade e nem sempre a gente sabe o que é a verdade.
Como você vê o Rio de Janeiro de hoje, com a degradação urbana, a violência, a intervenção do Exército?
Eu não presto muita atenção a isso, gosto sempre do Rio como ele é. Tem naturalmente os seus problemas, como todas as cidades do mundo. Mas em geral ele é alegre, é feliz, tem muita gente boa.
Ninguém da sua família foi assaltado?
Há pouco tempo roubaram o automóvel do meu neto, mas isso em uma vida inteira. Aconteceu…
Você é um homem de poucas palavras…
Desculpe se a entrevista não agradou muito, não tem muita sensação. É que a minha vida é comum mesmo.
Com toda a sua experiência e trajetória de vida, o natural seria imaginá-lo como causeur. Mas você parece não gostar muito de ficar contando histórias, e lembrando…
Como eu disse, vou levando minha vidinha calma, não quero complicações.
(Nascido em 29 de março de 1907, Braguinha morreria na véspera do Natal de 2006, aos 99 anos)
