Ópera jazz free fusion de Carla Bley e Paul Haines é um dos pontos máximos de um estilo que virou saco de pancadas da crítica
Jazzistas ortodoxos nunca aturaram. Para estes, interesses comerciais seriam o motivo principal para, por exemplo, Miles Davis inaugurar mais uma fase em sua carreira. E ser seguido por dezenas de músicos de jazz (e do rock) dos dois lados do Atlântico, e tantos outros oceanos. O Picasso do jazz teria se vendido. E, realmente, “Bitches brew” (1970) foi o seu disco que mais alto chegou na Billboard 200, atingindo a 35º posição. Também lhe garantiu seu primeiro Disco de Ouro em vida. Não tenho os números atualizados, mas, imagino que outro clássico de Miles, “Kind of Blue” (1959), hoje supere as marcas do álbum duplo que estabeleceu as bases do jazz-rock, ou jazz fusion.
Muitos dos instrumentistas que participaram de “Bitches brew” seguiram pelas trilhas abertas, incluindo Wayne Shorter e Joe Zawinul (o núcleo do Weather Report), Chick Corea (com outra banda básica do período, Return to Forever) ou John McLaughlin (com sua Mahavishnu Orchestra).
Se o jazz rock se esgotou rapidamente, muito do que foi produzido no período ainda merece aplauso. E, mais de cinco décadas depois, “Bitches brew” é uma das provas disso. Assim como, pelo lado britânico, “Third”, o também duplo álbum do então quarteto Soft Machine, que começou como psicodélico e pulou daí para o jazz quase sem se contaminar pelo progressivo.

No entanto, se tivesse que escolher apenas um exemplo, a opção seria “Escalator over the Hill”, disco triplo que herdei em 1979 de um amigo que viveu no Brasil nessa década. Idealizado pela pianista, organista, compositora Carla Bley (1936 – 2023) e pelo poeta e letrista de jazz Paul Haines (1932-2003), foi gravado em três estúdios de Nova York entre 1968 e 1971. Reuniu um quem é quem do jazz e do rock na época, quase uma centena de músicos. Do primeiro, entre outros, Gato Barbieri, Don Cherry, Michael Mantler, Roswell Rudd, Charlie Haden, Enrico Rava, Paul Motion, Dewey Redman; do segundo, ingleses como o baixista e cantor (então do Cream) Jack Bruce e o guitarrista John McLaughlin e a cantora estadunidense folk e pop Linda Ronstadt.
Como quase tudo que foi gravado no planeta, está disponível na rede. Dela pesco um dos muitos pontos altos dessa colina que é uma cordilheira: “Rawalpindi blues”, longa e boa viagem por jazz, rock, sabores orientais,
PS: Parte 2
Eleições de melhores disso e daquilo são questionáveis, no máximo, retratam um momento. No caso da escolha do álbum de Carla Bley & The Jazz Composers Orchestra, com algumas vantagens, por transcender o gênero a que foi associado.
Muito além do jazz rock, ou do Fusion (o termo mais apropriado, e que passou a prevalecer por sua maior abrangência), Carla veio da avant-garde e do free jazz. Esse álbum coletivo saiu quando o jazz-rock-fusion vivia seu auge criativo, sendo abraçado por muita gente dessas áreas.
No caldeirão tem jazz orquestral, music hall, ópera, ecos de Brecht & Weill, rock, sons étnicos. Miscelânea que embala um enredo no qual os temas cantados estão em personagens interpretados por, entre outros, Jack Bruce (“Jack”), Don Cherry (“Sand Shepherd”), Carla (“Leader”, “Mutant” e “Voice”), Linda Ronstadt, Jeanne Lee, Charlie Haden, McLaughlin, Sam Brown e Nancy Newton (que se alternam ou se juntam para dar voz a “Ginger”) e Viva (a atriz de Andy Warhol Janet Susan Mary Hoffmann, que continua viva aos 86 anos, dando vida a…”Viva”).

Instrumentalmente, nele podem ser conhecidos os melhores solos do argentino Gato Barbieri, também vivendo o auge de sua carreira solo e que, no ano seguinte, ganharia reconhecimento mundial com a trilha sonora de “The last tango in Paris”. Também os do guitarrista inglês John McLaughlin, que, no mesmo ano lançaria o grupo Mahavishnu Orchestra; e os do trompetista Don Cherry, que no fim dos anos 1950 tocara com “Mr. Free Jazz” por excelência, Ornette Coleman, e entre 1978 e 82 foi um terço do Codona, ao lado de Colin Walcott e Naná Vasconcelos. Ainda em “Escalator over the hill”, podemos encontrar o auge de Jack Bruce como cantor (em oito faixas), talento escondido no trio Cream, no qual o baixista dividia o microfone com Eric Clapton, e também em sua errática carreira solo.
Então, para fechar a tampa, mais uma pitada: “Little Pony Soldier”, com Carla & Jack
