Presente literário de Natal

Editado há um ano nos EUA, livro com a correspondência de Ray Bradbury é um presente para quem lê e, ainda mais, escreve

Para ler ao som da canção de Assis Valente: Boas festas, com Carlos Galhardo

Lançado nos EUA em novembro de 2023, aparentemente, “Remembrance: Selected Correspondence of Ray Bradbury” (Simon & Schuster) ainda não teve edição em português. Seja no Brasil ou Portugal. Soube do livro via uma resenha da recente tradução espanhola em “El País”. E, devidamente baixada, a versão original tem sido devorada digitalmente. Livro de Natal para quem tem interesse pela escrita. “Corte, corte, corte” é o conselho para muitos dos jovens iniciantes que o procuram.

Mas, há muito mais do que o chavão obrigatório. A nem sempre harmônica relação entre literatura adaptada para as telas (grandes ou pequenas) é outro foco na correspondência. Bradbury trabalhou com John Huston na versão de “Moby Dick” e, para mais de um interlocutor, comenta dos conflitos que viveu com o diretor tentando se manter fiel ao texto de Herman Melville. Achou que tinha perdido a batalha, mas, revela do prazer que foi assistir, dois anos depois das disputas, ao resultado no cinema. Nas cartas enviadas a Huston é possível ter noção da dedicação de Bradbury.

Ele teve muitos contos adaptados para a série de TV “Twilight Zone” e, no cinema, pelo menos dois livros, “O homem ilustrado” e “Fahrenheit 451” – sobre este, há rica troca-troca de cartas com François Truffaut, diretor da primeira, e melhor, filmagem, lançada em 1966.

Organizado  pelo biógrafo Jonathan R. Eller, reúne dezenas de cartas enviadas e recebidas pelo escritor de “Crônicas marcianas” e “Fahrenheit 451” entre o fim da adolescência e os últimos meses de seus 91 anos (Bradbury morreu em junho de 2012). Entre os missivistas estão outros grandes autores de ficção científica (Theodore Sturgeon, Arthur C. Clarke, Richard Matheson) e ainda escritores como Bertrand Russell, Graham Greene, Anaîs Nin, Gore Vidal…, editores, agentes literários e mais cineastas, incluindo Federico Fellini (eles se adoravam, pretendiam trabalhar juntos).

Separei os nomes de sci-fi dos outros pelo fato de Bradbury ter ido além do gênero. Para ficar em um só exemplo, “Licor de dente-de-leão” (Bertrand Brasil), fascinante romance que conheci na adolescência, quando, ao lado do irmão um ano mais velho, devoramos tudo que achávamos de ficção-científica. Boa parte via a portuguesa Coleção Argonauta, que, para dar uma esquentada nesse livro junto aos adeptos do gênero, batizou-o de “A cidade fantástica”. Na (provável ) primeira edição brasileira, anos 1990, “Dandelion wine” também ganhou uma “ajuda”, traduzido como “O vinho da alegria” (Best Seller). Quem beber do conteúdo de “Licor de dente-de-leão” vai entender o título direto escolhido por Bradbury.

Mãe, que partiu há uma semana, e pai não nos acompanhavam na paixão pela ficção-científica. Mas, tínhamos um forte aliado entre os amigos deles, Fausto Cunha, crítico de literatura em geral, e também escritor do gênero, incluindo “As noites marcianas”. Mas Eglê e Salim abriam exceção para Ray Bradbury (e Kurt Vonnegut).

Então, como bônus nesse dia 24 de dezembro, além da recomendação do livro com a correspondência selecionada de Bradbury, e em homenagem à Eglê Malheiros no sétimo dia de sua partida, reproduzo um escrito de sua juventude.

Saiu na “Sul: Revista do Círculo de Arte Moderna”, editada em Florianópolis por um grupo de jovens no qual o futuro casal se incluía. Na foto que abre o artigo, ocupando a página esquerda, quase não se vê o então já superstar da poesia Carlos Drummond de Andrade. Meio de perfil, no canto direito, ele está ao lado de Eglê, então aos 21 anos, três anos antes de se casar com Salim, o bigodudo no centro, ele aos 25 anos. Na infância, ela já tinha vindo uma ou duas vezes à cidade da família de seu pai, mas, em 1949, foi a primeira visita como adulta.

No texto, divide com lirismo e alguma crítica  as sensações que a então capital federal provocou na jovem catarinense. Quase uma cidade fantástica e real. Soa atemporal, contemporâneo, apesar da referência a telefones e de duas palavras que fui checar no pai dos burros, “pudibundo” e “desenxabida”, sem ter certeza de que se aplicam. Já o neologismo “crustaceamente” faz sentido.

“Notas ‘às vezes líricas’ sobre o Rio

O espaço é só paisagem

E as nuvens povoação

Se persegue miragem distante

Falam sonhos pelo motor

Depois em terra

Ficamos presentes

Eu

A saudade

E nem o avião

 – o – 

Como é complicado falar por telefone com a Casa do Estudante do Brasil! O Rio se transformou numa casa altíssima com muitos andares e telefones; todos confusos, se misturando e chamando em vão. Sempre se disca o número errado. E nunca chamam a pessoa indicada.

  • o –

O ‘Pão de Açúcar’ serve de barômetro: pico sem nuvens, sinal de bom tempo. É o trecho da paisagem do Rio que mais conheço. Morro pudibundo, sempre velado, sempre encoberto.

  • o –

E a gente em Copacabana, contemplando uma praia cinzenta. Às vezes o sol arriscava um raiozinho e a praia virava luz, alegria, beleza. E a luz trazia consigo a inexorável nostalgia de largos oceanos.

 É um mar tão grande

Um mar tão vasto

Tão diferente

A cada instante

Tem a poesia do ignoto

Traz a saudade

Do que não vi

  • o – 

A lua carioca é afastada, adquire uma arrogância cosmopolita que possui por estas bandas. Mas leva para as sacadas dos apartamentos uma vontade de aconchego e falas de amor. Igual como em ‘Desterro’ ela cascateia brilhantes no mar. Afinal, aos poucos, se reconhece nela a mesma amiga que sugere melancolias diáfanas.

  • o – 

Ao fim de algum tempo tudo se mistura. Anda-se, anda-se, E sempre a sarabanda de bondes, gente, automóveis, ruas, praias, praças… A torrente contínua de humanidade anônima, desconhecida, indiferente, mas irmã. Mora nos arranha-céus e nos cortiços, pensa em futebol ou pensa na vida. E faz aquelas intermináveis contas de esticar o ordenado, tentando alcançar as despesas. Fica-se sem direção, tontamente procurando tomar rumo.

  • o – 

Em qualquer parte do Rio os lugares ficam:

Passeio Público – com os poetas desrespeitados pelos passarinhos.

Leblon – e a curiosa multidão de pares desligados da realidade, imersos em mútua contemplação.

Vermelhinho – pois é, ali os intelectuais e artistas tomam cafezinho em pé, enquanto os “candidatos a…” se exibem crustaceamente pregados às cadeiras e aos “sandwiches”.

Ministério de Educação – o jardim adquire vida e harmonia, olhado lá de cima. E se nossa juventude fosse tão bela e corajosa como frente ao Ministério… Na sala de audiência do Ministro, convencional e austera, há jogados nas paredes humanos pedaços da vida brasileira. Me senti tão pequena.

Gruta da Imprensa – Mal entrevista na chuva, trouxe a recordação dos que ali foram ‘suicidados’. Triste lembrança para um lugar bonito.

Lagoa Rodrigo de Freitas – era uma tarde tão azul e uma vontade tão grande de passear.

Urca – a gente ia até o Pão de Açúcar, em lugar disso tomamos um banho na Urca. Está provado que um guarda-chuva não dá para três pessoas. E depois aquele história: ‘Os cabos são seguros, mas já pensaste no soalho do bondinho?’ É uma verdadeira cidade de bonecas o bairro da Urca; todas as casas bonitinhas, pintadinhas, bem alinhadas. Em pequena sonhei muito com uma cidade assim.

 -o – 

Há também uma porção de lugares vagamente apavorantes para onde nos levam os ônibus que nunca chegam ao fim da linha.

– o –  

Uma vez falamos com Graciliano Ramos. Voltamos na José Olympio, ele não estava. Foi pena.

Encontramos Carlos Drummond de Andrade num elevador. Como ele não é o ‘bicho papão’ que dizem, conversamos a valer.

Porém esses e alguns outros encontro são raros. Em geral se topa a cada passo com cavalheiros indesejáveis, cuja única função é tornar mais desagradável a vida humana. E o Rio tem tanto gente assim!

  • o – 

As sorveterias têm uma porção de sorvetes de nomes complicados. Pede-se, e depois fica-se desenxabida.

  • o –

No fim vem sempre a mesma frase batida e verdadeira: “O Rio é bom”.

  • o –

Um dia era tempo de voltar. Lá do alto comia os pedacinhos da paisagem carioca que restavam, tendo a mente condicionada para Florianópolis.

Depois em terra

Ficamos presentes

Nós

A saudade

E nem o avião.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

4 pensamentos

    1. Muito bom o teu artigo, incluindo a ficha completa de “Boas festas “. Grande abraço

  1. Sou duplamente suspeito mas muito bons os textos, tanto o seu como o da nossa Mãe. Importante também a lembrança de Assis Valente um excelente compositor que também era excelente desenhista e o melhor protético dentário do Rio na sua época. Gonçalo Junior no “Quem Samba tem Alegria” conta a história da sofrida vida de Assis Valente.

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