Verve de Lívia

Tárik de Souza saúda o terceiro disco de Lívia Mattos, sanfoneira de vanguarda que parte do regional para o planetário

Para ser lido ao som de Lívia Mattos em Verve 

Instrumento utilizado pelo pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989) para imprimir a música de sua região no mapa da MPB, o acordeom ou sanfona alça outros voos nos dedilhados vanguardistas da baiana Lívia Mattos. Ela, que já tocou com Chico Cesar, Rosa Passos e Badi Assad, além da Orquestra Sinfônica da Bahia, desenvolve uma instigante carreira solo desde Vinha da Ida (2017), onde surge na capa vestindo uma alegórica sanfona como se fosse um parangolé de Hélio Oiticica. Artista forjada no circo (enredo de um documentário que está filmando) numa das faixas recria o espírito lúdico do picadeiro, administrando uma fanfarra com pandeiros, instrumentos de corda e tuba, pilar de sua triangulação sonora ao lado da sanfona e bateria. Um contraponto ao tríptico básico do rei do baião, escudado na sanfona, triângulo e zabumba.

Mas Lívia parte do regional para o planetário desde o primeiro disco, onde trazia parcerias com o acordeonista franco-português Loic Cordeone e participações do referido Chico Cesar, Zé Manoel e Toninho Ferragutti. No seguinte, Apneia (2022) ela explorou o título nas suspensões, suspiros e faltas de ar da sonoridade escolhida. E convocou desde os nativos Ná Ozzetti (Grupo Rumo, da vanguarda paulistana), Armandinho, Carlos Malta, Ceumar e Marcos Suzano ao guineense Mu Mbana, a espanhola Irene Atienza e a egípcia Yasmine El Baramawy. Seu trabalho já foi exibido em festivais como International Macau Parade, na China, Cantos na Maré, na Galícia, Akkorden Festival Wien, na Áustria e Masa, na Costa do Marfim. Selecionada em 2017, para o programa Onebeat, da Found Sound Nation (EUA), realizou turnê e residência pelo país com outros 24 músicos de diversos países.

Ela acaba de lançar Verve (YB Music), terceiro álbum da trilogia solo, conduzindo seus 120 baixos em sincronia com Jefferson Babu (tuba) e Rafael dos Santos (bateria). A capa, com ela abrindo o fole, em foto de Tiago Lima, o mesmo das anteriores, reforça as autorreferências. Mas não espere monotonia, a partir da faixa título, um samba desconjuntado, repleto de arestas, calafetadas pelo intrincado diálogo do trio. Nomeada a partir da cidade cearense onde a música foi composta, Caucaia abre o roteiro num xaxado feroz, crivado de dissonâncias numa linha hermetiana, com o reforço do vocalise vertiginoso da indiana Varijashree Venugopal. Já Ndoukahakro, a maior faixa do disco, com mais de cinco minutos de duração, foi composta para aldeia com este nome na Costa do Marfim, na África, que a sanfoneira conheceu quando foi tocar em Abidjan. Participa da gravação, a bordo do instrumento kora e da voz bem timbrada, a senegalesa Senny Camara, que divide com a solista a volúpia dos versos (“é bom pra comer/ me dá água na boca”) e a conexão transatlântica Salvador-Costa do Marfim-Senegal.

Produzido por Alê Siqueira, o mesmo do disco de estreia, Verve mescla a energia da sanfoneira desbravadora, como nas escarpas do endemoniado choro xaxado “Forrogutti”, em homenagem ao acordeonista Toninho Ferragutti, outro ás do instrumento, com remansos amorosos. Acontece nas reverberações saborosas de Quanto Mais Doce e nos tilintares de Com Você Eu Vou (“navegando com o tempo”), onde a sanfona acaricia o canto da solista. O marejar do fole em Como se Fosse o Mar não banha Dorival Caymmi, mas as harmonias robustas do carioca Ivan Lins, seu parceiro na música, junto com a pianista Thais Nicodemo. A inspiração de Hermeto Pascoal na pegada free jazz de Lívia se materializa em Mundo Verde Esperança, composição do próprio, em que ela injeta dissonâncias e climas alternados, com a pontuação assertiva da tuba e uma bateria a serviço dos caminhos oblíquos da empreitada.

Parceria com o pianista Thadeu Romano, História de uma Cabeça fornece a atmosfera onírica para um clipe de endoidar. Nele, a cabeça é personagem multiforme de uma história seccionada em fragmentos no compasso do baião, enquanto a sanfoneira desenrola sua letra embolada, num quebra-língua sem trégua. Acabou o fôlego? Que nada. Ainda resta o frevo baiano trieletrizado Folia de Fole (não esqueçamos, a base é um trio), em escalas vigorosas intervaladas pela condução da bateria, com direito a um breque de tuba e a invasão de um coro coletivo, típico carnavalesco. Ele autentica a folia da vanguardista impenitente.

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