Cálida delicadeza

Tárik de Souza escreve sobre o manifesto instrumental requintado e conciso do Andreas Ernest Dias Quarteto

Para ser lido ao som de Andrea Ernest Dias em Andrea Ernest Dias Quarteto

DI EXCLUSIVO Rio de Janeiro (RJ) 28/09/2024 Andrea Ernest Dias quarteto – Flautista Andrea Ernest Dias com Felipe Larrosa Moura (bateria), Miguel Dias (contrabaixo) e Pedro Carneiro Silva (piano e teclado). Foto: Ana Branco / Divulgação

O Brasil é a terra do violão, mas leva a vida na flauta. Senão, ouçamos: Patápio Silva, Joaquim Calado, Pixinguinha, Benedito Lacerda, Altamiro Carrilho, Dante Santoro, Copinha, Carlos Poyares, Toninho Carrasqueira, Plauto Cruz, Dirceu Leite. Franklin da Flauta, Kim Ribeiro, Zé da Flauta, Celso Woltzenlogel e muitos mais, do choro à MPB. Com a bossa nova e o samba jazz, ainda emergiram sax/flautistas de estirpe, como Paulo Moura, Bebeto Castilho, Mauro Senise, J.T. Meirelles, Hermeto Pascoal. Já o compositor Danilo Caymmi soprava seu instrumento na Banda Nova, liderada por outro adepto da flauta, Tom Jobim. Mas essa história vem de mais longe, desde os rudimentares pífanos das bandas nordestinas, como os da centenária agremiação de Caruaru, Pernambuco, da dinastia de Sebastião Biano. Numa releitura contemporânea, surgiu, em 1994, a banda Pìfe Muderno, do multisopros Carlos Malta, ao lado dos percussionistas Marcos Suzano, Oscar Bolão, Durval Pereira e Bernardo Aguiar, e da ativista e professora do instrumento, Andrea Ernest Dias. Revezando-se na flauta, flautim, flauta em sol e flauta baixo, ela acaba de lançar em disco seu mais novo projeto: Andrea Ernest Dias Quarteto (Independente), integrado ainda pelo filho Miguel Dias (baixo), Pedro Carneiro Silva (piano e teclados) e Felipe Larrosa Moura (bateria).

“É muito bom tocar com eles, todos na faixa dos 30 anos e com formação e sensibilidades muito especiais”, exulta ela, no texto de apresentação. “Renova perspectivas, atualiza referências, e sonoridades, aprendo demais e vice-versa. E os três estão muito presentes na cena musical. Tocam com Pedro Luís, Bala Desejo, Chico Chico, Julia Vargas”, enumera.

O disco é um manifesto conciso (apenas sete faixas, em pouco mais de 25 minutos) e potente de intensa ebulição, cujo eixo estético é uma das maiores admirações de Andrea, o saxofonista, maestro e compositor pernambucano Moacir Santos (1926-2006). Além de ter participado do épico coletivo Ouro Negro, de 2001, em homenagem a ele, evocado no tema marinho noturno da foto da capa do atual projeto, ela escreveu uma tese de doutorado, que resultou no livro Moacir Santos, ou os Caminhos de um Músico Brasileiro” (Edições Folha Seca/CEP 2014/2016). E ainda promoveu edições do Festival Moacir Santos e um Moacir Santos Sinfônico, em parceria com a OSN/UFF.

Sua sólida formação erudita, que a levou do Conservatoire Supérieur Regional de Boulongne-Billacourt, à flautista contratada da Orquestra Sinfônica de Recife, onde solou Mozart, vem de berço. Ela é filha de uma educadora e flautista renomada, a parisiense Odette Ernest Dias, imigrante que aos 20 anos integrava a Orquestra Sinfônica Brasileira, foi professora do Conservatório Brasileiro de Música e participou do histórico disco Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, marco da bossa, em 1958. Já a filha, além de integrar a Orquestra Pixinguinha, de Henrique Cazes, e tocar com meia MPB, (de Milton Nascimento e Cássia Eller a Martinho da Vila e Caetano Veloso), em 1994, protagonizou a primeira audição do Divertimento para Flauta em Sol e Cordas, de Radamés Gnattali, com a Orquestra Opus Rio, sob regência de Ricardo Prado. Quando residiu na capital federal, Andrea ingressou no bacharelado em música da Universidade de Brasília, e teve entre seus professores, o compositor e maestro vanguardista Claudio Santoro (1919-1989).

Ele é outro dos autores escalados para este seleto Andrea Ernest Dias Quarteto. São três prelúdios para piano, letrados por Vinicius de Moraes, em 1957, quando ambos moravam em Paris. Mas aqui, obviamente, trazem apenas o diálogo instrumental. Dois são apresentados sob o formato de vinhetas. Acalanto da Rosa (1’33”), lírico, pontilhado por arabescos de flauta que, adiante, paira leve, quase diáfana, na faixa Em Algum Lugar (1’31”). Já Amor que Partiu, de entonação caymmiana, permite alguns arroubos de bateria, em sua coloração praieira, de desenvolvimento circular e cromatismo persistente.

Moacir Santos foi contemplado em duas escolhas. Uma delas, é o megaclássico afro/bossa/jazz Nanã, a Coisa nº5, do álbum obra-prima, Coisas, de 1965, que só receberia o devido reconhecimento mais de 35 anos depois. Os compassos alterados da composição fornecem oportunidade para um incessante intercâmbio de contrapontos entre órgão encorpado e sopro enrouquecido, sob pontuação saliente de baixo e percussão itinerante. O clima se exacerba ainda mais no outro tema de Moacir, Mãe Iracema, aberto nos couros da bateria, que baliza as evoluções da flauta, seccionadas por órgão, sob arremetidas e retomadas típicas da sintaxe picotada do revolucionário Moacir.

Seu discípulo confesso, o maestro, compositor, multinstrumentista e arranjador baiano Letieres Leite (1959-2021), que o homenageou em seu último disco (Moacir de Todos os Santos, 2022), é outro contemplado no roteiro. E com um tema autoral radiante, Professor Luminoso”, palco feérico para as acrobacias da flautista sobre cama semovente de órgão e percussão, com súbitas inversões de climas. Trata-se de uma espécie de autorretrato de timbres e texturas do pictórico Letieres, um inventor maiúsculo, que aliou os tambores basilares do candomblé (Rum, Pi e Lê, como diz o título de sua Orkestra Rumpilezz) aos sobrevoos indômitos do improviso jazzístico.

Na faixa mais longa deste disco incandescente, faz-se justiça a uma extraordinária melodista, sua majestade do Império Serrano, Dona Ivone Lara (1921-2018). O mavioso autorretrato Nasci para Sonhar e Cantar” (que ganhou letra do parceiro Delcio Carvalho), de 1982, tem seu intenso lirismo degustado, sem pressa, pela flauta de Andrea (6’24”). Ela explora meticulosamente seus recônditos tesouros, assessorada pelo trio, num ritual de cálida delicadeza, como se conduzisse um andor sagrado. Aliás, alguma dúvida? 

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