Cinderela de Niterói

Roberto Muggiati lembra um tempo em que a música morria antes da meia-noite e da viagem da última barca

Para ser lido ao som de Sergio Mendes & Bossa Rio em Você Ainda Não Ouviu Nada

Foto: Arquivo Público Nacional, domínio público/Wikimedia Commons

Tudo de bom começou a acontecer nos últimos anos do Rio como capital federal. Liberado do CPOR, comecei a passar as férias de inverno num hotel de luxo na praia de Copacabana, como todo curitibano que se prezava. Ouvi a orquestra de Woody Herman nos meus pagos – sábado à noite no Guairinha e domingo à tarde na quadra de basquete do Athletico. Dizzy Gillespie tinha vindo antes, o Departamento de Estado Americano começara a explorar o potencial do jazz como arma de propaganda anticomunista na Guerra Fria. Em 1959, fui um dos privilegiados na estreia brasileira de Sarah Vaughan, na boate Fred’s, que ficava em cima de um posto de gasolina na Atlântica esquina de Princesa Isabel. Caçando vinis de jazz importados no centro do Rio, topei com o Jonas Silva, funcionário da loja de eletrodomésticos Murray. Jonas foi o cantor dos Garotos da Lua que cedeu seu lugar ao João Gilberto – afinal, fazer música era divertido, mas não garantia o leite das crianças. À noite, ele recebia os interessados em seu apartamento no bairro de Fátima, um oásis de quietude off Lapa. Tínhamos acesso aos últimos discos gravados nos Estados Unidos, foi lá que conheci o colega “crítico de jazz” – especialidade jornalística mal paga, muitas vezes não paga – José Domingos Raffaelli, amigo de toda uma vida até morrer em 2014. Naquelas incursões cariocas, o jazz e a bossa me levavam por aí e tive a oportunidade de ouvir Sergio Mendes várias vezes no apartamento de Nara Leão. Ainda não tinha completado vinte anos e já era um gênio do teclado. Seu ídolo e influência maior era Horace Silver, com seu envolvente funky jazz, que Mendes adaptou para a batida brasileira. Só havia um problema: quando a festa estava no auge, qual Cinderela, ele tinha de partir antes da meia-noite para não perder a última barca para Niterói.

Em outubro de 1960, deixei o Brasil para passar dois anos em Paris, estudando jornalismo; e três em Londres, trabalhando no Serviço Brasileiro da BBC. Perdi um evento fabuloso, no Rio e em São Paulo, em julho de 1961: o Jazz no Municipal, que Jonas Silva, já proprietário do selo fonográfico Imagem, teve a primazia de gravar, em dois álbuns. Os americanos brindaram as plateias brasileiras com feras como os saxofonistas Coleman Hawkins e Zoot Sims, o flautista Herbie Mann, os trompetistas Roy Eldridge e Kenny Dorham, o trombonista Curtis Fuller e a cantora Chris Connor, entre outros. Nos intervalos dos shows rolaram jam sessions fabulosas e o talento de Sergio Mendes deixou os gringos boquiabertos. Aquele encontro acabaria sendo o estopim que detonou, no ano seguinte, o histórico concerto da bossa nova no Carnegie Hall de Nova York.

Em janeiro de 1964 – de férias na BBC – reencontrei Sergio Mendes já dono do seu próprio nariz – e de outros narizes, entre eles o do fabuloso trombonista Raul de Souza, que integrava o sexteto liderado por Mendes que fazia a música do espetáculo de Vinícius de Moraes e Carlos Lyra, Pobre Menina Rica. Pouco depois Sergio Mendes e sua banda partiam em turnê mundial que os levaria até o Japão. Era o começo do sucesso internacional do rapaz que nunca mais teria de se preocupar em correr atrás da última barca para Niterói.

3 pensamentos

  1. Adorei o seu texto, Roberto. E tomei a liberdade de lê-lo agora, ao vivo na Rádio Deleite. Dei todos os créditos, é claro. Obrigado e um abraço (www.radiodeleite.com.br)

  2. Maravilha e, de quebra, uma doce lembrança de Mestre Raf, professor para todo sempre.

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