No ritmo dos Bongo

Itamar Alves* estreia na AmaJazz falando sobre a geopolítico musical africana, onde um ditador do Gabão se liga mais no Grammy do que na Constituição

Para ser lido ao som de Alain Bongo em A Brand New Man

Arte: Daniel Kondo

O recente golpe no Gabão, oitavo quiprocó militar no continente africano desde 2020, trouxe uma história surreal a reboque. A relação da família Bongo com música pop ocidental.

Os fatos: os Bongos estavam no poder há 57 anos, o Gabão é podre de rico em petróleo, a população é pobre de marré em renda. Lula fez uma de suas costumeiras piadas de tiozão de almoço quando visitou o país em 2003: em uma reunião posterior com o presidente da Costa Rica, Abel Pacheco de la Espriella, Lula disse que foi “ao Gabão para aprender como ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição”.

A dinastia Bongo no Gabão começa em setembro de 1965, quando Omar Bongo assume o cargo de ministro-delegado da presidência comandando s pastas da Defesa e das Relações Exteriores. Devido à doença do presidente Léon Mba, Bongo foi nomeado vice-presidente do Gabão em novembro de 1966. Apoiado pelo governo francês, que sempre teve forte influência na sua antiga colônia, Bongo é mantido no cargo com a morte do presidente em 28 de novembro de 1967. Assim, Bongo torna-se o segundo presidente da República gabonesa, empossado a 2 de dezembro desse ano.

Assim que tomou o poder em 1966, Bongo Pai se derreteu de charmes pra cima de James Brown. O padrinho do soul entrou na década de 70 fazendo um show de aniversário pro chapa presidente na capital Libreville. Espertamente, sacou que tinha uma fonte de renda na amizade – até que não teve mais.

O início e o fim da parceria Omar/Brown foram de uma rapidez frenética. Brown entrou nos anos 70 com menos relevância, já que uma nova geração havia incorporado e modificado o funk do padrinho às novas correntes pop. Eis que surge um jovem presidente de nação africana nadando em petróleo, louco para amigar o funk brother number 1.

Omar cortejou James de todas as maneiras. Deu ao cantor US$ 160 mil e brindes faraônicos, incluindo uma presa de elefante, para que Brown viesse a Libreville cantar em seu aniversário.

Ainda assim, os perrengues financeiros de James continuaram. Dessa maneira, eventualmente, Mr. Dinamite despachava um acólito para mediar mais empréstimos com Bongo. Foi assim que Charles Bobbit (a voz de Make it Funky) chegou a Libreville cheio de carinho e deu a beliscada no presidente. Quando viu que o cascalho ia sair, Bobbit decidiu dar a rasteira no chefe e embolsou o montante. Charles montou casa no Gabão e foi produzir discos da família Bongo.

Aí entra na história Fred Wesley, trombonista dos JBs, que, também nos anos 70, veio à capital produzir o filho de Omar – na época ainda conhecido como Alain – nos caminhos do disco funk. Brand New Man foi lançado em 1978 por Bongo Filho. Naquele tempo ele ainda se apresentava como Alain Bongo – só mudou para Ali quando virou presidente.

O disco foi presenteado com altas resenhas na imprensa local. Uma delas é um primor de jornalismo musical: “Alain Bongo tem um estilo interpretativo único do lirismo das músicas, que o separa da maioria de seus contemporâneos”.

Alain/Ali herdou os dotes de sua mãe, provavelmente. Josephine Bongo se divorciou de Omar na década de 80 e virou a cantora Patience Dabany, conhecida como Mama Dabany. Mama faz a linha singer/songwriter de composições adultas. Pense em uma Joni Mitchell afropop.

A família Bongo não para. Tem também a irmã mais velha de Ali, Pascaline Bongo. Nos anos 90, ela foi ministra das Relações Exteriores do pai Omar, mas antes disso já havia galgado a fama como a provável última namorada de Bob Marley. Pascaline foi estudar nos Estados Unidos em 1979, caiu de amores pelo rei do reggae e o convidou para tocar em Libreville no ano seguinte. A banda foi, não sem um gostinho de que algo estava errado: a vocalista de apoio Judy Mowatt descreveu o país debaixo dos Bongos como “um país neocolonial controlado por um negro”.

A joia na coroa pop da família veio na década de 90, quando Michael Jackson botou os pés no Gabão. Não fez shows, fez melhor: desfilou pela cidade e curtiu à beça com os Bongos. A sagração.

Ali Bongo foi até o fim de seu reinado uma figura celebrada nas redes sociais. Era bom de tik tok, capaz de criar memes que furavam a órbita local como é possível ver aqui o presidente exibindo os dotes de rapper:

A comunidade musical africana lamenta na surdina a deposição dos Bongos. Noves fora a baixaria política de uma ditadura absolutamente imunda social e economicamente, Ali e seus parentes eram famosos por estender convites e despejar mimos a todo tipo de artista do continente. “É tudo muito triste”, disse um executivo da música, sob condição de anonimato, ao jornalista Yinka Adegoke.

Ali Bongo, claro, não caiu sem um showzinho de despedida. A última presepada veio na semana passada, quando pediu apoio internacional contra o golpe pelo tik tok. “Diga a todos para que façam barulho”, disparou, em um vídeo com edição de quem tá mais de olho em Grammy do que em Constituição.

Jornalista, professor de inglês, videomaker & podcaster. Criou e editou o podcast Tudo Joia e o videocast Dobradiça. Fez videoclipes para as bandas Mantena, Bufo Dígito e Displicina, coletivo de músicos, agitadores e artistas gráficos do qual faz parte. Tem programas editados para rádios europeias e brasileiras. Veio de Recife, mora no Guarujá, adora sushi.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.