Tárik de Souza lamenta que com a morte do pesquisador saia de cena um incansável estudioso musical deste país amnésico
Para ser lido ao som de Mario Pinheiro em A Boceta de Rapé

A história da MPB perdeu um gladiador de sua riqueza documental, com o falecimento do infatigável decano de seus pesquisadores e historiadores, o cearense radicado no Rio, Jairo Severiano, ocorrido em 27 de agosto. Ele morreu aos 95 anos, de causas não informadas, mas a notícia só foi comunicada pela família um mês depois, e divulgada nas redes sociais do também pesquisador Rodrigo Faour. Todos que trabalhamos com pesquisa e informação sobre o assunto, em algum momento – e muitas vezes, em muitos – bebemos em sua fonte inesgotável e generosa de conhecimento. No meu caso, que convivi durante décadas com ele, sempre atencioso e solícito a qualquer requisição de dados e material, fui seu editor e amigo, a perda é irreparável e sofrida.
Natural de Fortaleza, ele viveu entre sua cidade e o Recife, antes de migrar para o Rio nos anos 50, onde fez concurso para o Banco do Brasil. Já trazia no matulão de lembranças, como diria Luiz Gonzaga, uma paixão intensa pela música popular, com um interesse especial pelos conjuntos vocais. Como o formado por seus conterrâneos dos Quatro Ases e um Coringa, além dos Anjos do Inferno, Bando da Lua, e outros que moldariam a moderna MPB, como os Garotos da Lua. Estes, fizeram história ao importar, em 1950, o baiano de Juazeiro, João Gilberto, para o lugar do integrante pernambucano, Jonas Silva, que já cantava baixinho e de forma coloquial.
Intensificamos nossa amizade, a partir do 1º. Encontro de Pesquisadores da Música Popular Brasileira, no Teatro Guaíra, em 1975, na efervescente Curitiba, de Jaime Lerner, e do expoente do jornalismo musical local, o também saudoso e atuante Aramis Millarch (1943-1992). Da rede que foi se intensificando, também fazia parte o carioca Leon Barg (1930-2009), criado em Recife e radicado em Curitiba, onde sediou o fundamental selo de reedições Revivendo, a partir de sua monumental coleção de discos 78 rotações. Cinco anos antes, junto com a enorme equipe montada para o lançamento da série de fascículos da Editora Abril História da Música Popular Brasileira, aberta por Noel Rosa, em 1970, passei sufoco. Suamos para montar o repertório dos disquinhos quinzenais de 10 polegadas (exigência das gravadoras para não concorrer nas bancas com suas distribuições nas lojas), já que as donas das matrizes originais as tinham jogado fora – “vejam vocês”, para usar uma expressão cara ao Jairo – no canhestro intuito de desocupar espaço em seus galpões.
A produção dos fascículos foi iniciada sob a direção de Balfour Zapler, secretaria do pesquisador J.L. Ferrete, chefia de arte de Elifas Andreato, e, na assessoria, o historiador José Ramos Tinhorão, o maestro Julio Medaglia, o estudioso José Lino Grunewald, e eu. Havia ainda um “Colégio de (29) consultores”, sob um ecletismo capaz de abarcar dos cantores Aracy de Almeida e Francisco Petrônio, a Almirante, Lucio Rangel, Eneida, Ezequiel Neves, Jotaefegê, Miécio Caffé, Walter Silva, Ary Vasconcellos, Randal Juliano (sim, o posterior delator dos supostos excessos políticos da tropicália), os poetas Capinan e Augusto de Campos, e o Stravinsky tropicalista Rogério Duprat. Claro que boa parte deles não era atuante, mas havia material humano suficiente, para edificarmos um eficiente panorama da MPB, através dos artistas escolhidos e respectivos repertórios.
O problema era encontrar o material físico, descartado pelas multinacionais, que deveriam tê-lo preservado. Passamos a recorrer a colecionadores. Um deles, visitado por nós em casebre modesto e acanhado, na periferia de São Paulo, quase desanimou os dois expedicionários que iam compulsar seu acervo. Perguntei a Tinhorão: “mas onde estarão os discos?”. Existiam sim, em bom estado, mas no quintal, onde outrora habitavam as poedeiras de ovos do abnegado colecionador. Tasquei na minha coluna no Pasquim a sentença: “a memória da MPB foi parar no galinheiro”. Meu intercâmbio de informações com Jairo Severiano se intensificou à medida em que se sucediam as três séries de fascículos (1970, 1977, 1979), e foi seu estupendo trabalho de levantamento completo dos discos de 78 rotações, que nos aproximou ainda mais. Ele o concretizou com os pesquisadores Alcino Santos, Grácio Barbalho (um gentil médico potiguar cuja casa visitei, com seus 78 rotações acondicionados num ascético ambiente refrigerado) e Miguel Angelo de Azevedo, o Nirez – que edificou um Museu da Imagem e do Som particular em sua casa, em Fortaleza, a partir de coleções ecléticas de discos, fotos, partituras a figurinhas e até tampinhas de garrafa. Em 1982, a Funarte, capitaneada pelo compositor, produtor e agitador cultural Hermínio Bello de Carvalho, editou os cinco grossos volumes da Discografia Brasileira de 78 RPM – 1902-1964. A partir de extensa e denodada pesquisa realizada entre 1968 e 1979, a obra de cerca de três mil páginas, cobria todos os registros fonográficos neste suporte. Da pós-fase do cilindro para a chamada “chapa”, normalmente gravada nas duas faces. Da gravação “mecânica” (até 1927), onde o intérprete tinha que praticamente gritar para imprimir sua emissão no microssulco, tempos áureos de tenores como Vicente Celestino, à fase elétrica, do canto confidente de Mario Reis – daí em diante, até 1964, quando o LP passou a dominar.
Além de saborosas curiosidades como as gravações de A Boceta da Vovó, de 1902, na voz do cantor Bahiano (o do primeiro samba oficial, Pelo Telefone, de 1916, também incluído no levantamento, é obvio), e a de outro pioneiro Mario Pinheiro (A Boceta de Rapé, de 1905), muitas descobertas históricas saíram deste acervo. Como a da primeira vez em que a expressão bossa nova foi utilizada com a conotação de algo inovador, inusitado. Foi em Cinema Bossa Nova, um fox, de Chico Anysio e Hianto de Almeida, lançado por Carlos Henrique, depois locutor de uma rede varejista, em agosto de 1955, exatos três anos antes do 78 rotações Chega de Saudade, com João Gilberto. Ou uma rara gravação de Carmem Miranda, de Cartola, Tenho um Novo Amor, de 1932, e a estreia de Jorge Ben, ainda como crooner, do conjunto do organista Zé Maria, num 78 contendo Mas, que Nada e Por Causa de Você, Menina, em 1963.
A partir deste acervo e da generosidade de Jairo, que abriu sua coleção particular, meticulosamente catalogada, ao pesquisador Silvio Julio, começou a ser montada, já com o complemento de LPs e CDs (e posteriormente DVDs) a matriz do primeiro banco de dados digital acoplado a um site de música, o pioneiro Clique Music, que editei em 2000. A ideia inicial era apenas um jornal musical eletrônico, mas como havia esta compilação, que Silvio também promovia na casa de outros colecionadores como eu, Roberto M. Moura, Sérgio Cabral, Paulo Cesar de Andrade, além de discotecas de emissoras de rádio, juntamos o útil ao utilíssimo. Quando o Clique Music foi lançado, recebemos adesões de internautas ilustres como o jornalista Ivan Lessa, do Pasquim, então residente em Londres, aficionado impenitente de raridades.
Encerrado este capítulo, o mesmo acervo cada vez mais ampliado, sempre contando com o precioso apoio de Jairo, desaguaria num novo projeto. Nascia o Jornal Musical, em 2006, financiado pelo produtor e sociólogo alemão Andreas Pavel, meu colega nos fascículos da Abril. Ele empregou na iniciativa parte da indenização recebida da multinacional Sony, pela apropriação de sua patente do aparelho de áudio walkman. A bordo de uma equipe montada com o pesquisador e produtor João Carlos Carino, a partir da base inicial do trabalho de Jairo e seus pioneiros, constituiu-se o IMMUB (Instituto Memória Musical Brasileira), o mais completo banco de dados de discos e suportes musicais do país.
Acumulando as raras qualidades de pesquisador detalhista e redator fluente, Jairo lançou, em 1987, o livro Yes, Nós Temos Braguinha, sua biografia do ás das marchinhas, Carlos Alberto Ferreira Braga (1907-2006), parceiro de Noel Rosa, no Bando dos Tangarás e importante executivo do disco. Quando assumi a direção da coleção de livros de música popular da editora 34, em meados dos 90, o projeto de Jairo com o historiador, pesquisador e jornalista paulistano Zuza Homem de Mello (1933-2020), A Canção no Tempo, que abordava “85 anos de músicas brasileiras” estava num impasse, a pouco mais de meio caminho do final.
Propus dividir a obra em dois volumes e lançamos logo o primeiro, em 1997, que cobria o período de canções mais marcantes, surgidas entre 1902 e 1957. O sucesso foi tão grande que logo os problemas se resolveram, e o número dois (1958-1985) foi editado no ano seguinte, também com enorme êxito, o mais significativo da coleção, com mais de sete edições cada. Como produtor, Jairo também teve atuação marcante em preciosidades como O Ciclo Vargas (Fundação Roberto Marinho), o mitológico Native Brazilian Music (Museu Villa Lobos), reunindo as gravações realizadas em 1940, no navio Uruguai, atracado no cais carioca, pelo maestro americano Leopold Stokowski, com Pixinguinha, Donga, João da Bahiana, Cartola, Jararaca e Ratinho, Nosso Sinhô do Samba (Funarte) e LPs duplos de performances inéditas de Dorival Caymmi e Tom Jobim, em parceria com sua sócia, a museóloga Vera de Alencar.
Coordenou ainda os projetos Memória Musical Carioca (Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro), com o também emérito pesquisador, Paulo Tapajós, e entronizou outro dos pioneiros, sobre a obra do musicólogo e estudioso, Mozart Araújo (Centro Cultural Banco do Brasil).
Em agosto de 1999, quando ministrava o curso A MPB em Quatro Tempos no Centro Musical Antonio Adolfo, Jairo foi incentivado pelos alunos a desenvolver o tema em livro. Nasciam as 500 páginas de Uma História da Música Popular Brasileira – Das Origens à Modernidade (Editora 34, 2008), mais uma inestimável contribuição deste apaixonado pelo Fluminense carioca (seu conhecimento de futebol era tão enciclopédico quanto o de música).
Memorialista incansável, num país em que para citar mais uma vez o saudoso pasquineiro Ivan Lessa, “a cada quinze anos se esquece o que aconteceu nos 15 anos anteriores”, o legado de Jairo continuará ecoando enquanto existir música popular brasileira.

Ótimo artigo, Tárik, sobre o incansável e talentoso Jairo.
Abraços e obrigado
Maravilhoso artigo sobre o nosso herói Jairo Severiano feito pelo meu herói nº2, Tárik de Souza. Um “salve” para essas figuras que nos orgulham!
É sempre triste a perda de uma pessoa que se notabilizou como pesquisador, divulgador, comentarista ou em outras atividades associadas a quaisquer dos movimentos artísticos. A história vai ficando para trás e, nos dias de hoje, cada vez se vê menos pessoas interessadas na preservação do patrimônio cultural. O samba clássico de Noel e Cartola, o chorinho de Pixinguinha, a bossa nova de Tom, Nara e outros, nosso instrumental, tudo vai ficando por conta de quem bebeu nessas fontes ou, ainda que tardiamente, descobriu o encanto desses gêneros musicais, com um processo atual de divulgação muito limitado.
Maravilhoso ❤ E ainda por cima era um doce de ser humano. No princípio das redes sociais escrevi pra ele, declarando minha admiração profunda: ele me mandou dois livros de presente… lamento muito não ter tido a chance de conhecê-lo pessoalmente.