Euá, euá, aiô, euá, euá

Juliano Fontanive Dupont* estreia na AmaJazz e revela como o gaúcho Salomão Scliar aproximou o baiano Glauber Rocha do candomblé

Para ser lido ao som de Música Religiosa: Afro-Brasileira – Candomblé

Arte: Daniel Kondo

Terra em Transe (1967), obra-prima de Glauber Rocha, abre com um plano aéreo sobre o mar, aproximando-se lentamente da costa fluminense. A trilha é um canto responsorial simples e repetitivo – “euá, euá, aiô, euá, euá” – acompanhado de batuque. Uma música de candomblé, indutora ao transe, que acompanhará toda a narrativa do filme.

A autoria e a interpretação da música de terreiro não são creditadas – assim como não são creditados os trechos de Verdi, Carlos Gomes e Villa-Lobos que também ouvimos na trilha sonora. O único crédito musical apontado pelo diretor pertence a Sérgio Ricardo, compositor paulista que vinha colaborando com Glauber desde Barravento (1961). Um ano depois de Terra em Transe, Rogério Sganzerla usaria a mesma gravação do filme de Glauber na trilha de Bandido da Luz Vermelha (1968), novamente sem creditá-la.

Escarafunchei a bibliografia cinematográfica e todos os cantos da internet em busca de alguma referência à origem desses cantos de candomblé – sem sucesso (teria ido à Deep Web, se soubesse como…). Achava espantoso que não se encontrasse qualquer indicação a respeito do fonograma. O mistério me inquietava desde a primeira vez que assisti a Terra em Transe, cerca de vinte anos atrás, na saudosa Sala P.F. Gastal.

A solução do enigma veio no ano passado, quando levantei o assunto durante um curso sobre história do cinema gaúcho promovido pela Secretaria de Cultura do Estado e ministrado pelo pesquisador Glênio Póvoas e pela crítica de cinema Fatimarlei Lunardelli. Póvoas matou a charada. Por e-mail, enviou a resposta que saciou minha curiosidade: “Sempre desconfiei que estes cânticos pertencem a um LP produzido pelo Salomão Scliar, em 1961: Música religiosa: afro-brasileira – Candomblé (Documentos folclóricos brasileiros, série III). Ouça, a faixa Euá.

Póvoas havia estudado profundamente a obra do porto-alegrense Salomão Scliar para escrever a dissertação que resultou no livro Vento Norte: história e análise do filme de Salomão Scliar (Porto Alegre, 2002). Além de fotógrafo, cineasta, produtor e roteirista, Scliar (irmão do artista plástico Carlos e primo do escritor Moacyr) foi editor de livros de arte e também de alguns LPs, através da editora Xauã.

As gravações dos LPs de candomblé e capoeira ocorreram no Terreiro do Gantois, em Salvador. O selo, porém, teve vida curta. Salomão Scliar viria ainda a produzir um outro LP, Música de Israel, para a Irmãos Vitale.

Os discos eram realizados com a mesma qualidade com que Scliar editara livros de arte, acompanhados de textos e fotografias. LPs como esses da editora Xauã e Música de Israel são documentos de enorme valor cultural e musicológico, divulgados por colecionadores anônimos na internet em plataformas como o YouTube – onde podemos desfrutar do acervo sem, infelizmente, a garantia da permanência e preservação dos documentos ali depositados.

A afinidade de Glauber com Scliar não se encerra no fonograma. Glauber havia assistido e se inspirado em Vento Norte, longa-metragem realizado no litoral do Rio Grande do Sul, para criar Barravento. Interessado em entender o Brasil, procurou uma música negra brasileira para os créditos iniciais de Terra em Transe e encontrou as gravações feitas pelo artista gaúcho nos terreiros da Bahia.

 Assim como africanos escravizados chegaram pelo Atlântico, sua obra-prima sobre o Brasil principia do Atlântico, ao som de “Euá”, para finalmente aportar em terras brasileiras permanentemente em transe.

* Juliano Fontanive Dupont é programador musical da Rádio UFRGS

3 pensamentos

  1. Texto interessante, mas há coisas que não batem. Quem canta na abertura de Terra em Transe é a própria Menininha do Gantois e esse disco teve o dedo do fotógrafo José Medeiros meio derivado das reportagens q ele fez na Bahia para O Cruzeiro. Ninguém é creditado, quem me contou foi o próprio Zé. Eu tenho o vinil. Gravaram tb um de Capoeira. Essa abertura é inspirada na de Soy Cuba! o doc soviético do Kolatozov feito em Havana um ano antes. Por outro lado Barravento não pode ser inspirado em Vento Norte pois o filme foi escrito e começou a ser dirigido pelo Luiz Paulino dos Santos e o Glauber era apenas no início diretor de produção. A inspiração é seguramente é Tabu do Murnau, o que não diminui as eventuais qualidades do filme do Salomão Scliar. Glauber, embora de formação protestante, cresceu em Salvador e sem dúvida conhecia o candomblé desde criança.

    1. Oi, João Carlos. Provavelmente a Menininha do Gantois esteja entre as vozes que ouvimos, talvez seja a voz principal que puxa o canto e resposta. Glauber chegou depois na produção do filme, mas imprimiu-lhe o estilo. Vento Norte é apenas uma entre outras influências, que são muitas – A Terra Treme, de Visconti, Stromboli, de Rosseilini etc. Com certeza Glauber conhecia o candomblé. Que “o gaúcho Salomão Scliar tenha aproximado o baiano Glauber Rocha do candomblé” é uma deliciosa provocação do nosso debochado editor Márcio Pinheiro.

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