Biopic de Ney pinta sensível retrato do artista quando bicho – para ouvir ao som de “Calúnias (Telma eu não sou gay)”.

“Ney de Souza Pereira não dá!”, questionam amigos e colegas do grupo que se preparava para estrear. Então já balzaquiano, o rapaz que sonhava em ser ator, e se mantinha como artesão, resolve adotar o nome (do meio) do pai, Antônio Mattogrosso Pereira. Este o militar que oprimia o talento artístico do filho desde a infância. Como estamos cansados de saber, a troca ajudou. Da noite pro dia, o cantor andrógino dos Secos & Molhados arrombou a porta e entrou para a história da música popular brasileira. Claro que além do nome artístico forte, da maquiagem e dos figurinos inusitados e inovadores, há a voz de registro raro, incomum para homens, entre o contralto e o tenore bianco, e uma sensibilidade artística fora da curva.

Estas e muitas outras histórias são muito bem contadas em “Homem com H”, o biopic dirigido por Esmir Filho que entrou em sua segunda semana de exibição no circuito brasileiro. Jesuíta Barbosa brilha no papel do cantor, cobrindo mais de três décadas. Desde que, em resposta à opressão paterna, se alista em 1959 na Aeronáutica, até o fim dos anos 1980, ao lançar o disco ao vivo “O pescador de pérolas”, quando, sem maquiagem, de terno branco, acompanhado de grandes instrumentistas, passeou por clássicos da canção brasileira, do bolero e da ópera.
Em outubro do ano passado, em texto aqui na AmaJazz sobre “Tom Jobim Musical”, comentei sobre “o esgotamento de um gênero híbrido – biografia de grandes nomes da música brasileira – que nas duas últimas décadas virou uma receita certa de sucesso”. Se aquele musical de teatro errou em muitos quesitos – principalmente, ao tentar condensar as quase sete décadas de vida e carreira, enfileirando muitos dos encontros de Tom, os dois casamentos e os trabalhos com Vinicius, João Gilberto, Frank Sinatra, Elis e até gente não tão presente em seu trajeto, como Agostinho dos Santos, Jair Rodrigues, Elza Soares – Esmir Filho (diretor e roterista) soube pinçar fatos e pessoas entre os muitos na vida de Ney Matogrosso.
Ainda sobre biopics recentes, encantei-me com “Um completo desconhecido” (“A complete unknown”), com Timothée Chalamet vivendo Bob Dylan entre 1961 e 65 no longa de James Mangold. Mas, já li (e concordo) gente tachando-o como um filme “sessão da tarde”. E, sobre Dylan, ou melhor, variações sobre ele, é bem melhor e mais criativo “I’m not there”, de Todd Haynes, no qual diferentes personas do cantor e compositor estadunidense são vividas por seis atores, incluindo Christian Bale, Heath Ledger, Richard Gere e até Cate Blanchett (esta tão perfeita quanto Chalamet no período de “Like a rolling stone”).

De certa forma, como cinema, “Homem com H” também é “sessão da tarde”. Esmir foi bem mais ousado em seu longa de estreia, “Os famosos e os duendes da morte”, em 2010, que, por sinal, tem Dylan como um dos temas, o personagem principal é um adolescente gaúcho obcecado pelo cantor e compositor. Também arriscou no irregular “Verlust” (2020), no qual Marina Lima vive uma cantora e compositora em crise, remetendo ao momento fundo do poço da própria em boa parte dos anos 2000.
No entanto, recheado de muitas cenas de sexo, na TV aberta, “Homem com H” estaria mais para “Sessão Coruja”. É um filme que também tem fôlego de sobra para continuar sua carreira nas plataformas de streaming.
Sobre “Verlust”, classifiquei como irregular pelo fato de ter assistido apenas na TV e também não ter cumprido a expectativa do argumento de Ismael Caneppele (também um dos protagonistas, ao lado de Andrea Beltrão, esta no papel da empresária da artista em bloqueio criativo), que conheci alguns anos antes de o filme ser lançado.
De volta a “Homem com H”, ressalta a figura libertária de Ney, com rebolados e trejeitos que entraram nos lares dos brasileiros em horário nobre, no período mais cruel da ditadura. Na vida pessoal, além do conflito com pai machão, e o apoio velado da mãe (Dona Beita, que, por sinal, centenária, ainda vive), o filme foca três de seus raros relacionamentos amorosos duradouros, um deles, Cazuza. E muitas orgias. Para quem tem na memória de Pier Paolo Pasolini a Derek Jarman, nada de novo na telona, mas, este é outro forte apelo para as novas gerações.
Revolucionário nos costumes, Ney contestou e incomodou a ditadura. Mas, politicamente, pouco aparece de suas ideias no filme. Um momento é o reencontro com o pai, em 1967, no qual este conta que passou para a reserva por não concordar com os rumos tomados pelos militares. Na vida real, e mais recentemente, como tanta gente manipulada pela grande mídia, Ney engrossou o coro do golpe contra Dilma – que, nunca é demais frisar, foi derrubada mais por seus méritos do que por suas falhas (investir em Belo Monte, ceder à presão de CBF e Fifa na Copa de 2014 ou ao mercado financeiro). E, em 2022, meses antes da eleição, o cantor pregou o voto nulo, equiparando Lula a Bolsonaro – imperdoável, já que após o desastroso primeiro mandato do sujeito que agora pede anistia.
Como a bossa nova, o homossexualismo é muito natural, acompanha a Humanidade desde sempre – e, como cientistas atestaram, também rola entre os não humanos. O que nunca impediu o preconceito que ainda cerca o tema. Haja vista a censura que a aeronáutica brasileira exerce sobre a biografia de seu patrono, Santos Dumont. Coincidentemente, assisti a “Homem com H” ontem, o dia em que o mundo conheceu o novo líder da igreja católica. Analistas garantem que Leão XIV dará sequência ao pontificado humanista de Francisco. Mas, falta avançar muito em campo no qual as mulheres não têm voz e o homossexualismo é velado, dando margem aos casos de pedofilia. Mesmo assim, enquanto uma Mama Madonna (ou Lady Gaga) não tem chance, Papa Matogrosso já seria um avanço.
Para ilustrar esse texto, apelei a fotos de “O homem de Neardenthal”, o primeiro show solo de Ney, que cliquei em maio de 1976, durante sua passagem pela Sala Corpo & Som do MAM/RJ. Então, entre os músicos da banda, estava Roberto de Carvalho, logo depois apresentado a Rita Lee pelo cantor.
Na trilha sonora, “Calúnias (Telma eu não sou gay” é faixa que acabou limada das versões em CD e streaming de “…Pois é”, álbum de 1983 que também apresentou a versão de Ney para “Pro dia nascer feliz” (Frejat e Cazuza). Paródia escrita por Leo Jaime, Leandro Verdeal e Big Abreu a partir de “Tell me once again” (de um grupo brasileiro que se passava por gringo, The Light Reflections), ela foi gravada para “Os maiores sucessos de João Penca e seus Miquinhos Amestrados”, com participação de Ney. A fita chegou às rádios e virou um sucesso instantâneo no Brasil inteiro. Tanto que os diretores da gravadora Ariola exigiram que Ney incluísse “Calúnias” também no álbum “…Pois é”. Péssimo negócio para o disco de estreia dos Miquinhos, um dos mais inventivos grupos do rock brasileiro dos anos 1980, que, um ano antes, tinham contribuído com Eduardo Dussek no disco “Cantando no banheiro”. Pois é, outra história, que não está, nem cabe, em “Homem com H”, mas merece ser contada.

