Como pode a morte de uma pessoa de 87 anos ser precoce?
Para ler ouvindo Eu fiz pior, com Edy Star

Das centenas de amigos que fiz pelas redes sociais, nenhum me deu tanta alegria quanto Edy Star. Nos quase oito anos de convivência, desde a primeira mensagem trocada em julho de 2017, Edy nunca deixou de me divertir e de me surpreender – a última surpresa, desagradável, foi a de ele morrer tão de repente, sem a devida despedida que ele merecia dar a tantos.
Surpreender era uma de suas marcas, provavelmente – dizem – desde que surgiu na Bahia. A mim, que pouco conhecia de sua obra e de sua trajetória até o início da troca de mensagens, Edy parecia uma inesgotável fonte de histórias. Eu já sabia que ele havia sido o parceiro – por muitos anos não creditado – de Gilberto Gil em Procissão, sabia também que ele estivera com Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Raul Seixas na Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, mas tudo mais que eu soube dele foi através da sua constante presença nas páginas do Facebook, de uma intensa correspondência eletrônica (muitas vezes na madrugada, quando ele se mostrava ainda mais inspirado) e das duas únicas vezes em que conversamos ao vivo.
Surpreendentemente, como sempre, Edy chegou à sessão de autógrafos do meu livro sobre o Pasquim em São Paulo. Eu, claro, o havia convidado, mas em momento algum ele garantira presença. Sua entrada – acredite – entre o discreto (nos primeiros passos) e o espalhafatoso (logo a seguir) deu outra dimensão ao lançamento. Ele recordou sua audaciosa entrevista ao Pasquim, sua convivência com a patota da redação, sua amizade com Jaguar e também a proximidade que os dois tiveram, inclusive com Edy recuperando a presença do cartunista na plateia de um de seus shows na Praça Mauá em que a grande atração – Edy me contou às gargalhadas – era um anão com um membro avantajadíssimo (é mais ou menos o que ele descreve com gestos nessa foto ao meu lado). Esse aperitivo em forma de anedota me fez insistir para que conversássemos mais. E Edy, claro, não me decepcionou.
No dia seguinte, em um bar próximo da Avenida Paulista, ele estava com a corda toda. Eu, que não sabia se ligava ou não o gravador (optei por não fazer isso para não perder a espontaneidade), passei boa parte do tempo tentando reter na memória as histórias que se acumulavam – às vezes, eu, disfarçadamente, fazia anotações na caderneta. Era uma melhor do que a outra. A juventude em Salvador, a amizade com Gal Costa, Glauber Rocha, Caetano Veloso, as exposições de artes plásticas na Bazart, os programas de TV que participou na Bahia (que teve uma demissão quase ao vivo), a vida como concursado da Petrobras, a relação com a família. Tudo isso me espantava, ainda mais pelo fato de que ele sequer chegara aos primeiros 30 anos de vida. Depois só melhoraria: a ida para o Rio de Janeiro, o primeiro disco, o convívio com as patotas do Pasquim e do Lampião, a intimidade com Emílio Santiago (inclusive com um apelido entre os dois) e a decisão de se mudar para Espanha – e lá se suicidar.
Sim, a morte era um tema constante para Edy e – mesmo que sua persona pública fosse esfuziante – não foram poucas as vezes em que ele se mostrou sombrio e deprimido em suas postagens. Muitas vezes falando em suicídio. Mas na Espanha, Edy não morreu. Renasceu, se reinventou, viajou bastante e continuou acumulando fotos que guardava na sua “bolsinha” e que aos poucos despejava no Facebook.
Depois de décadas na Europa, decidiu voltar. E fez bem. Escolheu São Paulo, que, me confessou, o fazia se sentir mais à vontade do que no Rio ou em Salvador. Descoberto pelas novas gerações, ele gravou mais na última década do que nas quatro anteriores. Também circulou muito, deu entrevistas, recebeu homenagens, lançou dois livros, foi protagonista de um ótimo documentário e emendou quase que um show atrás do outro. A morte de Edy me deixa ainda a mágoa de ter tentado – e não conseguido – trazê-lo para uma apresentação em Porto Alegre.
Por tudo o que fez, o que ainda fazia – como recitar poemas no Facebook (procurem um vídeo em que ele fala de Fernando Pessoa), pintar quadros (negociava com ele a aquisição de uma obra), tecer críticas políticas sem ser partidário, duvidar do identitarismo, exaltar seu pioneirismo em tantas frentes… – e também o que pretendia fazer (a que mais me animava era um disco que gostaria de gravar interpretando mambos com uma grande orquestra), me confirmam que essa morte estava fora dos planos – dele e de seus amigos e admiradores.
E me deixam com uma dúvida que, bem ao estilo de Edy, também é surpreendente: como pode a morte de uma pessoa de 87 anos ser precoce?
