Quando a música pop é clássica

Tributo sinfônico aos Beach Boys reafirma a genialidade de Brian Wilson e seus parças

Brian Wilson em São Paulo, em novembro de 2004, quando apresentou
o show Smiles no TIM Festival / Foto: Antonio Carlos Miguel

É provável que Brian Wilson tenha ouvido, e aprovado, The Seven Synmphonies: A classical tribute to Beach Boys. O álbum lançado em 2022, pela Antwerp Philharmonic Orchestra & Alexandra Arrieche, é mais uma confirmação da musicalidade do grupo no qual ele esteve ligado desde 1961. Idealizado pelos músicos e produtores holandeses Rob van Weelde e Roeland Jacobs, o projeto parte de 33 canções pescadas de discos editados entre 1963 e 2012. Diferentemente de outro similar, de seis anos atrás (The Beach Boys with the Royal Philharmonic Orchestra), com arranjos orquestrais dos maiores sucessos, este investe em canções menos conhecidas. A dupla fez um recorte de temas nos quais as celestiais harmonizacões vocais dão as caras e as composições de Brian (ou de seus companheiros no grupo) são como “músicas clássicas encapsuladas em gravações de dois minutos e meio”.

A definição aspeada da última frase vem de David Leaf, escritor e produtor que é um dos entrevistados no documentário Back to the Beach, Boys!, que, lançado agora em 2024, está disponível no YouTube (link). Dirigido por Marcel De Vré, conta em detalhes como nasceu o tributo, trazendo entrevistas com os principais responsáveis pelo disco e pela orquestra da Antuérpia, que tem como maestrina uma brasileira, Alexandra Arrieche. Também foram ouvidas pessoas ligadas aos Beach Boys, incluindo David Marks (guitarrista e vocalista na formação inicial, presente nos muitos discos que eles gravaram entre 1961 e 64), Stephen Kalinich (poeta e compositor, parceiro de Dennis Wilson nos anos 1970, cuja canção “Little Bird” dá nome a uma das sete sinfonias) e Don Randi (pianista e compositor que esteve nas sessões de estúdio de Pet sounds, álbum lançado em 1966 que é a obra-prima de Brian Wilson & Beach Boys). 

Alexandra Arrieche, a brasileira que rege a Antwerp Philharmonic Orchestra / Reprodução

O documentário é boa porta de entrada à sinfonia, assim como outro filme também dirigido por De Vré, The Seven Symphonies LIVE! A classical tribute to Beach Boys music in concert (link). Este é registro, em junho de 2022, da estreia da sinfonia, num teatro na Antuérpia, com 12 câmeras pegando detalhes de tudo. Após esse concerto na Bélgica, The Seven Symphonies foi apresentado nos EUA (em Seattle) e na África do Sul. Enquanto os idealizadores avançaram no filão com Another Seven Symphonies, a symphonic tribute to Beatles music, a partir de 39 canções de Lennon, McCartney e Harrison. Mas, sobre este ainda nada sei, sequestrado que estou há uma semana pelos Beach Boys sinfônicos (obrigado ao “Brian Wilson dos Miquinhos Amestrados”, Leandro Verdeal, que me aplicou do documentário).

Roeland Jacobs, o arranjador que montou a colcha de retalhos, diz, que, ao receber o convite de Rob van Weelde, não se entusiasmou. Até então, só conhecia os sucessos do grupo, presos à fórmula inicial de surf, garotas, Sol, praia, carros em velocidade pela orla de Los Angeles. O próprio van Weelde ao mergulhar na pesquisa se surpreendeu com a riqueza da obra, tanto que deu à quinta peça o nome Symphony of the unknown por reunir canções que também não conhecia, entre outras, “Full sail”, “Baby blue” (ambas de um álbum de 1979, L.A. (Light album) e “Winds of change” (de M.I.U., em 1978).

As seis primeiras sinfonias misturam trechos de canções de diferentes discos, enquanto a sétima, Pet Symphony, concentra-se em sete faixas do maior clássico dos Beach Boys, Pet Sounds. Entre elas, a instrumental “Let’s go away for awhile” (já um tema de estrutura clássica na gravação original, deixando os músicos de orquestra na época boquiabertos com a genialidade do rapaz de então 23 anos), “Don’t talk (Put your head on my shoulder)”, “I just wasn’t made for these times”, “Caroline, No” e “God only knows”.

Este foi o álbum que Brian Wilson idealizou, compôs (com letras de Tony Asher) e produziu impactado pela audição, a partir de dezembro de 1965, de Rubber Soul, o disco no qual os Beatles começaram a voar alto. Na época, Brian já não participava mais das turnês, preferindo se concentrar na criação. Ao lado dos melhores músicos dos estúdios de Los Angeles, ele gravou as bases instrumentais e, depois, seus colegas “apenas” botaram as vozes. Com aspas pelo fato de, inspirado em grupos vocais de folk, doo wop e jazz da época, os Beach Boys sempre terem sido perfeitos nesse quesito, como provam muitas introduções a capella. Na época, o álbum incomodou os chefões da gravadora Capitol, que o boicotaram,  botando junto no mercado mais uma coletânea de sucessos do grupo. Mas, as melhores cabeças souberam apreciar. Como Paul McCartney, que nunca se cansou de relembrar: Sgt. Pepper (lançado em junho de 1967) foi a resposta dos Beatles a Pet Sounds.

Em 1961, incentivados pelo pai, Murry Wilson,  Brian, dois irmãos mais novos, Dennis e Carl,  um primo, Mike Love, e amigos da vizinhança como David Marks e Al Jardine, criaram o grupo. Até 1964, quando a beatlemania chegou aos EUA, eles reinavam em seu país. No ano seguinte, eles demitiram o pai-empresário, que, a exemplo do pai dos Jackson 5, era abusivo, e começaram a ampliar a receita. Brian conta que despertou para a música ao ouvir aos 3 anos “Raphsody in Blue”, de Gershwin – compositor que veio a homenagear em 2010 em Brian Wilson reimagines George Gershwin, álbum no qual até pôde compor postumamente com seu ídolo, recebendo dos herdeiros dois temas inacabados, “The like in I love you” e “Nothing but love”. No início da adolescência, Chuck Berry foi outra influência decisiva – um dos primeiros hits dos Beach Boys, “Surfin’ in the U.S.A.” foi escrita a partir de “Sweet Little sixteen”, de Berry.

A mistura de George Gershwin, Chuck Berry e Four Freshmen até pode ser uma das explicações para a fórmula dos irmãos Wilson e seus amigos. Mas, em arte, há muito mais em jogo.

Aos 82 anos, completados em 20 de junho, Brian podia ter partido antes, já que sempre enfrentou problemas de saúde física e mental e se afundou em drogas em boa parte dos anos 1970. Mas, sobreviveu à perda dos irmãos Dennis  (em dezembro de 1983, por afogamento, ajudado por muita heroína e vodka) e Carl (em fevereiro de 1998, por câncer de pulmão) e,  desde fevereiro passado, convive com o diagnóstico de demência. Felizmente, se é que ainda faltava algum reconhecimento, é provável que tenha ouvido, e adorado, The Seven Synmphonies.

PS: The Seven Synmphonies, o álbum, também está disponível nas plataformas de streaming. Enquanto, no Spotify, há uma playlist feita pelos produtores com as gravações originais dos Beach Boys para as 33 músicas usadas na criação das sete sinfonias: As 33 gravações dos Beach Boys.

PS2: não me lembro quem me fotografou em 2004 ao lado de Brian, mas, sou eternamente grato, e botarei o crédito assim que souber.

Publicado em ...
Avatar de Desconhecido

Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

Nenhum pensamento

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.