Eles falam tudo e não dizem nada

Itamar Alves lembra as aventuras de Maurício Valladares & o roNca roNca

Arte: Giovanna Mota/Foto: Maurício Valladares

Em seu ensaio A dúvida de Cézanne, Maurice Merleau-Ponty propõe que a revolução visual causada pelo pintor francês no início do século passado foi resultado de uma insólita mistura entre conceitos clássicos e modernos. Para o filósofo, Cézanne usou as técnicas impressionistas, então o suprassumo progressista, para chegar na realidade carnal, o ideal conservador. Vale citação de Ponty: “suspender os hábitos e revelar o fundo de natureza inumana sobre o qual o homem se instala”. Ou seja, chegar na imagem mais real do que o real.

De modo bem mais anárquico, e infinitamente menos louvado pelos anais acadêmicos, pode-se dizer o mesmo de um dos programas mais longevos do rádio brasileiro, o carioca Ronca Ronca (ou roNca roNca, como seus ouvintes preferem grafar). Há 40 anos “na pista”, Maurício Valladares roteiriza, monta e edita semanalmente uma orgia sônica de duas horas, que tritura no mesmo liquidificador música, conversa fiada, antigos programas de rádio e televisão, gritaria, bebedeira, futebol e até, pasmem, silêncio.

“Bom, roteiro é relativo”, garante Valladares. Fácil acreditar nele, de vez que absolutamente tudo no roNca roNca é instável. As músicas são repetidas três ou quatro vezes, os assuntos são interrompidos por detalhes alheios à conversa, as supostas duas horas de duração são constantemente ultrapassadas. Uma típica semana envolve o anúncio de um tópico que será discutido somente em episódios posteriores, já que Maurício e seu impagável parceiro de locução, Nandão, podem se interessar por um tema aleatório em cima da hora – geralmente, um que tenha zero pertinência com o debate em progresso.

A forma é o super trunfo do programa. Se Cézanne buscava nas telas maçãs com cores e texturas mais verdadeiras do que a realidade, Maurício Valladares invoca pelos tocadores a experiência sonora da maneira mais sinestésica possível. No roNca roNca tudo tem gosto, cheiro e ruído – não necessariamente nessa ordem. Aliás, em ordem alguma. A perversão de expectativas é um dos prazeres dos episódios, a começar pela linguagem.

Programas de rádio costumam se equilibrar entre o local e o universal. A arte de cativar audiência é uma teia sutil de promessas contraditórias, na qual o ouvinte é enredado pela sereia a lhe chamar de único, ao mesmo tempo que membro de um gangue iluminada. O roNca roNca faz o contrário. Abusa de um hermetismo carioquês que dificulta a experiência de novos ouvintes. Ao escutar o programa pela primeira vez, estes deparam-se com entidades como “Tripa” (apelido dos fãs) e “Diretora Mirinha”, além de jargões próprios: “muita atividade nessa hora” signica prestar atenção; “cabeleira alta” é algo ou alguém com profundo conhecimento. Como se entrasse em uma roda de capoeira, o neófito é seduzido – ou não – pelo número de rasteiras que a edição do programa distribui.

“Faz tanto tempo que eu nem lembro exatamente quando comecei a ouvir o roNca roNca”, diz a socióloga e podcaster Willana Almeida, ouvinte de Recife que furou a bolha e, vez ou outra, comenta sobre cinema no programa. “Cada episódio afeta a gente com profundidade, uma experiência ao mesmo tempo particular e coletiva, seja falando dum filme numa plataforma digital, de futebol ou do que der na telha. Aliás, esta também é uma característica do próprio Maurício: disseminar suas admirações, dividi-las conosco e nos converter a elas. O roNca roNca é a parte funda da piscina dos programas de rádio.”

“Parte funda da piscina” é uma das expressões do programa. Significa “só para iniciados”.

Maurício Valladares, carioca e vascaíno, é mais conhecido como MauVal, apelido que o acompanha pelo dial desde os primeiros passos como locutor na famigerada Rádio Fluminense, no início da década de 1980. Antes disso, Valladares já havia contribuído com textos e, principalmente, com fotos em revistas de música, como a efêmera primeira leva da Rolling Stone no Brasil e a Roll.

Freddie Mercury (Foto: Maurício Valladares)

MauVal era a figura ideal para o jornalismo musical de um país na periferia dos grandes shows e lançamentos de música pop. Louco por música e fotografia, tinha acesso a viagens internacionais através dos contatos de seu pai com a Marinha Mercante brasileira. O fabuloso acervo de cliques do jovem fotógrafo envolve chapas quentes de artistas em seus habitats naturais, sejam palcos, estúdios ou baixarias noturnas. Eventualmente, Valladares resolveu passar a segunda metade da década de 1970 perambulando pela Europa e contribuindo com semanários ingleses e publicações brasileiras. De volta ao Brasil, viu a onda do rock brasileiro da nova década se formar nos estertores da ditadura militar. Maurício pegou sua prancha e surfou sem dó.

Gilberto Gil (Foto: Maurício Valladares)

A Fluminense FM, que ficou conhecida pelo apelido de “Maldita”, entrou para a história da música popular no Brasil quando resolveu se conectar com a juventude sônica que despontou nos anos 80. A rádio niteroiense já operava há uma década quando passou por uma reformulação em 1982, capitaneada pelo jornalista Luiz Antonio Mello, que recalibrou a equipe e apontou as antenas para uma programação com 24 horas de música, especialmente de rock. Valladares criou o programa Rock Alive, onde se destacou por rodar as novidades das praias anglo-saxãs (pós-punk, new wave etc.) e, passaporte para se tornar uma figura cult, dar espaço para a produção independente do novo cenário do rock brasilis. De Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens a Detrito Federal, a rapaziada do eixo Rio-São Paulo-Brasília se ligou que havia um maluco disposto a irradiar as fitas demo que caíssem no colo dele.

Maurício, como sói acontecer, não apenas tocou a música da nova vaga. Virou o fotógrafo do B-rock (termo inventado pelo jornalista Arthur Dapieve para rotular a geração 80), clicando shows e capas de discos. É dele a capa do primeiro disco da Legião Urbana, além de ser o fotógrafo oficial dos Paralamas do Sucesso (em 2006 lançou um livro compilando suas imagens da banda). Além da câmera, também trabalhou na burocracia das gravadoras, seja como olheiro ou como produtor. MauVal é baixista e tem histórias hilárias sobre o famoso preconceito contra a música reggae na Fluminense FM.

(Foto: Maurício Valladares)

Leandro Saueia, jornalista de Santos, litoral de São Paulo, diz que “como antigo leitor da Bizz, me lembro de alguns textos esporádicos do MauVal na revista e de saber da existência do Ronca Tripa, o primeiro nome do roNca roNca, no Rio. Gosto de pensar que se tivesse escutado o programa ainda na pré-adolescência, ou mesmo ali pelos 20 anos, eu teria sido uma pessoa mais aberta musicalmente desde cedo. Com a internet, tomei conhecimento do culto ao roNca e seu criador. O roNca roNca não é um programa do tipo ame ou odeie, longe disso, mas só faz realmente sentido se você mergulha de cabeça. Não à toa, tem gente que o escuta religiosamente há quatro décadas, e outras tantas que contribuem financeiramente para mantê-lo no ar. Para esses, a ideia de viver em um mundo sem o programa é simplesmente impensável.”

O roNca roNca é a faca amolada da carreira de seu criador. Vai-e-vens constantes entre estações de rádio, agendas de gravadoras e todo tipo de envolvimento com os bastidores da música pop no país legaram um acervo único, cujas prateleiras Maurício se serve com parcimônia calculada. O centro do seu programa é a “falation” (como ele chama a tagarelice intensa de cada episódio), mas, piscou, MauVal passa a mão na sua bunda com uma carta fora do baralho: quando Galvão, um dos fundadores dos Novos Baianos, morreu em outubro passado, Valladares enfiou no roNca da semana uma sessão de rádio exclusiva da década de 90 com o cantor; volta e meia roda trechos de entrevistas e músicas com Renato Russo ou algum outro luminar de sua coleção privada.

(Autorretrato: Mauricio Valladares)

Da mesma forma que Paul Cézanne, Maurício Valladares e Nandão mesclam tradição e novidade. Adeptos ferrenhos de mídias físicas, defendem discos de vinil, livros de papel e filmes no cinema. Ao mesmo tempo, abraçam a potência das novas mídias digitais e das redes sociais, deixando claro que a experiência completa do programa passa obrigatoriamente pelo site recheado de cacarecos, que mantêm atualizado, e no qual se pode ouvir o programa antes que suba nos streamings de música, e pelas interações nas plataformas.

O mundo do roNca roNca parece dizer o tempo inteiro que o futuro está no passado, e vice-versa. Não se pode ser moderno sem tradição, é um dos legados estéticos do século passado. Ao perverterem a linguagem do rádio, enquanto a abraçam loucamente, os programas de Maurício Valladares criam uma fricção deliciosa que espanta os fantasmas do didatismo e do passadismo, verdadeiras pragas que assolam a cachoeira de podcasts, programas de YouTube e maratonas de Twitch atuais. Em tempos de transição tecnológica material e existencial, deixar os ouvintes no limite do fôlego a cada semana é praticamente uma operação mágica.

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