Um homem grave

Itamar Alves presta homenagem a Aston “Family Man” Barrett, que deu a tragada final na erva de Jah no início do mês

Para ser lido ao som de Aston “Family Man” Barrett e Gilberto Gil em Vamos Fugir/Gimme Your Love

Foto: Aston Barrett com Gilberto Gil (Reprodução Instituto Gilberto Gil)

Quando Tom Jobim despachou a música popular de qualquer país que não fosse Brasil, Cuba ou Estados Unidos para o século 19 – “o resto é valsa” –, sabiamente isentou sacolejos caribenhos de irem junto para a tumba da belle époque. Porque um dos ziriguiduns mais originais da música pop do pós-Segunda Guerra foi o reggae.

Justamente um de seus lendários arquitetos deu a tragada final na erva de Jah no início de fevereiro. Aston “Family Man” Barrett foi um dos responsáveis pelo groove irresistível dos Wailers, banda que contava com Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer em sua formação. Junto com o mano baterista Carl Barrett, Aston costurou com seu baixo toda uma estrutura sônica calculada para induzir à dança e ao transe. Louvado seja Jah.

Brevíssimo resumo: a ex-colônia britânica da Jamaica conquistou a independência política em 1962, mas desde o fim da Segunda Guerra já havia começado a declarar sua independência cultural através da música. Quando se descolou de vez do Império Britânico, o país era uma usina de músicos e festas dançantes, que eventualmente desembocaria em uma intrincada rede de estúdios e sistemas de som móveis, os famigerados sound systems.

Nascidos em Kingston, os irmãos Barrett tocavam instrumentos centrais da nova música que se anunciava. Reggae, popularizado a partir da segunda metade da década de 1960, foi o resultado de uma mutação e tanto: dos discos de rhythm’n’blues, doo-wop e soul que chegavam dos Estados Unidos, os jamaicanos aceleraram a rotação quando tocavam covers em festas e, no processo, pariram o ska. Outras vezes, pisavam no freio e deixavam um ou outro rastafari louvar seu deus. Nascia a reggae music, mooon!

Aston Barrett juntou-se a duas bandas épicas que faziam o circuito da capital, The Upsetters e The Wailers. Aqueles foram apadrinhados por um dos produtores mais alucinados a pilotar uma mesa de som – encharcada de reverb – na Jamaica, Lee “Scratch” Perry, enquanto os Wailers possuíam o trio de cantores mais espertos do pedaço, Marley, Tosh e Bunny Wailer. Quando estes resolveram se mandar para Londres na década de 70 e tentar a sorte em uma gravadora, Aston escolheu ficar de vez com os Wailers. O resto é história.

Em 1984, Aston encarou as harmonias gilgilbertianas em um estúdio em Kingston, viagem arquitetada por Gil & seu produtor, Liminha. O baiano já tinha provado da banda inglesa da maçã na década anterior, agora queria a outra banda de reggae. Quando Liminha e Gil fecharam parceria no início da década de 1980, com o disco Luar (A Gente Precisa Ver o Luar), os dois estavam antenados no som de Kingston.

Um aparte técnico: no reggae, o instrumento que conduz as variações harmônicas dentro da canção é o baixo. Ao contrário dos onipresentes violões e guitarras da música popular brasileira e do rock, quem captura os ouvintes são as linhas de baixo, que costuram pausas e variações matemáticas. Logo, vê-se que o centro gravitacional do corpo para quem faz e ouve reggae é o ventre, sempre disposto a balançar com os graves estourando de uma equalização macon… perfeita.

Ergo, Jamaica. Três anos depois, para seu novo disco, Raça Humana, Gil já havia gravado um reggae poderoso, a faixa-título. Mas queria provar da planta local, levando Liminha a tiracolo, quem precisava antes fazer um pit-stop em Nova York. Gil chegou sozinho no Tuff Gong, o famoso estúdio onde Marley, já superstar, ensaiava na década de 70 quando voava de Londres para Kingston. Liminha o reencontraria dois dias depois, supostamente já em processo criativo com Aston, Carl e grande elenco, incluindo Jimmy Cliff, já então mais brasileiro que jamaicano, ciceroneando Gil entre as feras do Tuff Gong.

Segundo Liminha, porém, a coisa não foi tão fácil, porque Gil tinha uma sofisticação harmônica que entrou em choque com a máquina de groove caribenha. O baiano conseguiu gravar duas músicas completas com a banda, que não entraram nem no disco, nem na carreira de Gil. A terceira, entretanto, que teimava em não sair, era a grande aposta de Liminha para a sessão.

Uma base que eles haviam gravado como demo tape na casa do produtor, um pouco antes da viagem, que só tinha uma frase repetida ad nauseam: “give me your love”.

Liminha diz que a coisa se resolveu quando Aston Barrett enrolou um tronco da boa e criou a linha de baixo matadora, que é baseada no andamento do clássico marleyano Is This Love? – o produtor diz que a banda tocou a original de Bob Marley inteirinha antes de gravar. Give me Your Love estava pronta. Assim que chegou ao Rio de Janeiro, Gil verteu a letra para sua glória em português: Vamos Fugir.

Quando o groove de lei grampeia, o couro come toda hora. E é por isso que vou apertar o play e tocar a música agora.

Boa viagem para Aston Barrett, vida longa para quem fica. Ganja rules.

Nenhum pensamento

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.