Coberturas oba-oba 

Antônio Carlos Miguel  questiona a mistura entre jornalismo e propaganda que impera na cobertura cultural

Na edição noturna de telejornal local, reportagem sobre a chuva que finalmente chegara com tudo na região metropolitana do Rio de Janeiro termina com o alerta das autoridades para que moradores só saiam de casa se for realmente necessário. Após o intervalo comercial, em outra cobertura, sobre uma série de shows na Marina da Glória, ao ar livre e com elenco (horripilante) pra lá de eclético, a repórter parece estar em outro mundo. Com o tom eufórico que, nos últimos tempos, caracteriza o jornalismo quando o tema é cultura e entretenimento, minimiza o temporal que começava a chegar a Centro e Zona Sul cariocas, e já fazia estragos em diversos outros pontos em torno da Baía da Guanabara. Termina sua participação nos bastidores, entrevistando a dupla sertaneja escalada para abrir a noite e, num crescente de empolgação, parece incentivar quem ainda não comprou seu ingresso a correr que ainda dá tempo. Tempo ruim, como, horas depois, se confirmou. Showveu!

Aparente e felizmente, sem grandes problemas no evento em questão. Enquanto, na tarde do dia seguinte (domingo, 14 de janeiro), as vítimas fatais da enxurrada na noite passada em Niterói e arredores e cidades da Baixada Fluminense já chegam a 11 – mais duas pessoas desaparecidas, arrastadas pelas águas.

Quando foi mesmo que jornalismo cultural virou propaganda? Em TV, rádio, jornal, internet, a forma como é apresentada qualquer nova atração de festivais, seja esse Universo Spanta ou megas como Lollapaloza, The Town ou RiR, é quase sempre risível. Ou irritante. Artistas que batem ponto anualmente em tais eventos são anunciados com estardalhaço, quando, no máximo, mereciam o tédio. “Lá vem de novo aquele chato”, diria um autêntico e esnobe carioca tempos atrás.

Não é o caso de discutir o conteúdo e o gosto. Há muito que esses mega-festivais esgotam seus ingressos independentemente do line-up ou do set list – para usarmos termos do bom português que também abundam  no jornalismo de entretenimento. A fórmula inventada e aprimorada por Roberto Medina há 40 anos é o que impera. Sem dúvida, empreendimentos de sucesso, e não se questiona o bem que o setor traz para toda uma cadeia produtiva, gerando milhares de empregos diretos e indiretos, movendo diferentes setores da economia. O que irrita é ver os meio de comunicação guiados por esse oba-oba, quase sempre mais pautados pelos contratos publicitários fechados do que pelos manuais do jornalismo. Antes, durante e depois dos espetáculos, o que se percebe é o senso crítico jogado para o escanteio. É preciso uma tragédia, como a morte da fã de Taylor Swift devido ao calor extremo e as falhas na organização dos shows da Eras Tour no Engenhão, em novembro passado, para a alegria artificial arrefecer. E, logo depois, voltar, cheia de sorrisos amarelos, como se não houvesse passado, presente e amanhã. Já eras!

PS: para ilustrar o post, pedimos permissão aos artistas que, há 32 mil anos, desenharam nas paredes da Caverna de Chauvet, na França.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

2 pensamentos

  1. Boa noite, AC Miguel.
    Infelizmente, na maior parte das oportunidades, a qualidade dos eventos musicais, quando patrocinados ou cobertos pelas emissoras de tv, é deixada de lado, sendo substituída pelos interesses comerciais que se sobrepõem, repetindo a fórmula já vista na programação das emissoras, que prioriza sempre os mesmos, não se renovando e nem buscando melhorar o panorama musical. O motivo, velado, todos sabemos, pois o que manda hoje é o refrão forte e temas mal construídos versando sobre amores sofridos e perdidos. Valorização de letra e melodia como regra nas composições fazem parte do passado. Com esse panorama as coberturas jornalísticas dos eventos musicais se perderam. Por exemplo, preste atenção nas coberturas de uns anos para cá do carnaval e as compare com aquelas de tempos idos. Quase tudo ficou banalizado, como na lei do menor esforço. Com relação à chuva, essa na cidade do RJ não se deu em intensidade de temporais pelos quais já passamos, mas parece que agora a chuva não precisa ser necessariamente forte e duradoura como antes, bastando uma pancada seguida de uma chuva fina persistente para produzir estragos quase análogos. Muitas coisas podem responder por isso, como a ineficiência na abrangência na coleta do lixo domiciliar, manutenção inadequada dos cursos d’água, efetivo subdimensionado para atender a esses serviços e, o que me parece preponderante, a falta ainda de uma melhor conscientização de parte da população, principalmente ocupantes das áreas mais carentes da cidade, em relação ao trato do lixo. Enfim, ainda devemos passar por um longo tempo, sem que o quadro se altere, comentando esses fatos bem narrados na sua matéria.

    1. É isso. E sobre o lixo jogado pela população, lembremos do exemplo do Japão como uma meta a alcançar. Falta muita educação. Abraços

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