Antônio Carlos Miguel mergulha nas ondas do novo documentário sobre Dorival Caymmi, em sessão no Festival do Rio que teve como abertura o curta sobre a parceria de Macalé e Oiticica

A caminho da sala de cinema, além da curiosidade, algumas perguntas frequentavam os neurônios que agora comandam o batuque nas teclas de um laptop. Teria sentido mais um longa-metragem sobre Dorival Caymmi? O que o diretor Locca Faria poderia acrescentar nesse que é o quarto documentário lançado após a morte, aos 96 anos, em 16 de agosto de 2008, do homem que inventou a Bahia na canção popular brasileira?
Passados os 90 minutos de Nas ondas de Dorival Caymmi, título da Première Brasil: Mostra Retratos, dúvida alguma restava, sobravam encantamentos. Reforçados também pelo aperitivo de abertura na noite, o curta (não tão curto assim, com 25 minutos), Macaléia, dirigido por Rejane Zilles, sobre a relação artística e de amizade entre Jards Macalé e o artista plástico Hélio Oiticica.
Invertendo a sequência e começando pelo prato principal, o filme de Locca Faria oferece um profundo painel da obra e da personalidade daquele que também é um dos fundadores da música popular moderna. Como documentário, Nas ondas de… pode ser mais convencional do que seus antecessores, estes, com abordagem mais poética, Dê Lembranças a todos (2018), dirigido pelos irmãos Fábio e Thiago Di Fiore; Um homem de afetos (2019), de Daniela Broitman; e Dorivando Saravá, o Preto que Virou Mar (2019), de Henrique Dantas. Mas, é bem mais completo, já nasce como referência obrigatória para qualquer um que, após mergulhar na concisa (em torno de 120 canções) e definitiva obra musical, queira saber sobre a biografia do homem e sua técnica, que faz parecer tudo tão simples. Nesse sentido, vai além do que outro documentário, lançado oito anos antes da morte do personagem, já anunciava, Um certo Dorival Caymmi (2000), direção de Aluisio Didier.
Como muitos dos depoimentos colhidos por Locca Faria junto a especialistas reafirmam, diversas canções parecem sempre ter existido. De certa forma, ele devolve o que vivenciou, quase sempre em estado contemplativo, atento ao mundo e a personagens do cotidiano: dos bordões de vendedores ambulantes às cantigas populares ou dos terreiros de Salvador e arredores.
A lista de gente ouvida é um quem é quem da geração pós bossa nova, unânimes em reconhecer o pioneirismo de Caymmi, o primeiro a gravar apenas (todas as aspas, por favor) com voz e violão – este, impressionista, às vezes funcionando como uma orquestra. Estilo que serviu da base para o que João Gilberto faria a partir dos anos 1950, sintetizando a batida da bossa nova. Na abertura, teatral como é de seu feitio, Maria Bethânia diz que para falar de Caymmi é necessário se levantar. Em seguida, trechos das primeiras aparições de Caymmi no cinema e também de Carmen Miranda interpretando O que é que a baiana tem?. Esta, incluída no filme Banana da terra, lançado em 1939, garantiu ao jovem recém chegado de Salvador sucesso instantâneo. No Brasil inteiro e, logo depois, com a ida de Carmen para os EUA, ao redor do planeta. Música que os irmãos do norte classificam como uma list song: em pinceladas sutis e irresistível apelo rítmico, ele vai montando o quadro, vestindo e apresentando ao mundo peça a peça o protótipo da baiana estilizada.

Após Bethânia, alternados a diversos trechos de filmes e entrevistas com o cantor e compositor, o mistério de Caymmi, suas criações e seu violão tão únicos são analisados pelo primeiro time da canção brasileira que entrou em campo a partir dos anos 1960. Os três filhos, Nana, Dori e Danilo, Chico Buarque (que Nana revela ser o preferido do pai), Caetano, Gil, Paulo César Pinheiro, Hermínio Bello de Carvalho, João Bosco, Nelson Motta… Há também os comentários precisos dos jornalistas Jairo Severiano, Tárik de Souza e Ricardo Cravo Albim, do executivo André Midani e, entre os jovens, do cantor, compositor e violonista Alfredo Del Penho.
Seguindo a cronologia, o filme passa pelas canções praieiras, pelos sambas-canção cariocas e, talvez sem dar o merecido destaque, de raspão, pelos cânticos vindos do candomblé, outro campo no qual foi pioneiro. Há ainda o Caymmi pintor e, permeando tudo, o homem que soube tão bem viver. Além de analisadas em minúcias pelos entrevistados, generosos trechos de muitas canções têm lugar, interpretadas pelo próprio ou por Clara Nunes, Gal, Bethânia, BNegão, Casuarina e, nos créditos, até por Renato Russo, em versão empostada e reverente demais de Só louco. No mínimo, serve para confirmar a abrangência de uma obra que está no DNA do Brasil.

mesmo nome a partir de croqui deixado por Hélio Oiticica
Passando para Macaléia, era a forma carinhosa como Oiticica chamava o amigo e parceiro e, agora, o narrador do documentário de Rejane Zilles. O artista plástico criou capas de discos de Macalé (Aprendendo a nadar) e Gal Costa (Legal, que teve direção musical do cantor e compositor). Em meio à reencenação de uma festa “dirigida”por Oiticica na casa de Macalé, em 1978, e de uma instalação também apelidada de Macaléia, são lembradas histórias vividas pelos dois e recuperados antigos filmes caseiros com o artista plástico. Daria para dobrar a duração do documentário, alongando os pequenos trechos musicais incluídos. Deliciosos 25 minutos de Macaléia, deixando a sensação de quero mais.
