Retrato do pianista quando assassinado

Antônio Carlos Miguel divide a emoção e as lágrimas provocadas pelo  filme de Fernando Trueba e Javier Mariscal sobre Tenório Jr., que abre a 25º edição do Festival do Rio

O pianista Tenório Jr. segundo a animação dirigida por Trueba e Mariscal

O material de divulgação de Atiraram no pianista bem que podia ter um aviso parodiando a abertura de uma velha canção:  “Prepare seu coração para as coisas que esse filme vai contar”. Com o adendo, “não esqueça os lenços de papel”.

Afinal, é impossível conter as lágrimas durante as quase duas horas do documentário de animação idealizado e dirigido pelo espanhol Fernando Trueba, em parceria com Javier Mariscal, que abre na noite dessa quinta-feira, 5 de outubro, a 25º edição do Festival do Rio.  O longa é baseado na dramática história de vida e desaparecimento do pianista Tenório Jr. Então aos 35 anos, em turnê com Vinicius de Moraes e Toquinho, em março de 1976,  ele saiu do hotel em Buenos Aires para comprar um sanduíche e foi detido pela polícia política argentina. Confundido com um ativista de esquerda, passou dias sendo torturado, até seus algozes perceberem o erro. Como era comum na época, ao invés de desculpas, preferiram matá-lo e sumir com o corpo.

Tenório Jr e Vinicius de Moraes no show em Buenos Aires, em março de 1976

O madrilenho Trueba, de 68 anos, é um dos principais nome do cinema espanhol atual. Também ligado à música, em parceria com o jornalista e idealizador do festival de cinema de Miami Nat Chediak criou o selo Calle 54, que já lançou importantes títulos de jazz latino e flamenco. Apaixonado pela música popular brasileira, principalmente aquela produzida entre os anos 1960 e 70, ele se encantou pelo piano de Tenório, presente em muitos de seus discos preferidos, de gente como Gal Costa, Nana Caymmi, Lô Borges, Edu Lobo, Joyce, Milton Nascimento. Em fins da década 1990, após comprar uma edição japonesa do único álbum solo de Tenório, Embalo (lançado originalmente em 1964), Trueba percebeu que seu faro não falhara. E também ficou sabendo de sua morte.

À direita, o jornalista Jeff Harris, que, dublado pelo ator Jeff Goldblum, é o personagem (e alter ego de Trueba) que narra a trágica história do músico brasileiro.

Inicialmente para o que seria um documentário, Trueba começou a gravar entrevistas no Rio, em Buenos Aires e Nova York. Até que, por volta de 2010, após realizar, também em parceria com Mariscal, o longa de animação Chico & Rita (ficção sobre uma cantora e um pianista de jazz na Cuba dos anos 1940), mudou de ideia. Criou como narrador, e seu alter ego, o jornalista novaiorquino Jeff Harris (dublado pelo ator Jeff Goldblum), que, em meio à pesquisa de um artigo sobre a bossa nova para a revista The New Yorker, se depara com a história de Tenório. É esse Jeff-Jeff-Fernando quem conduz as entrevistas e grava as respostas nas vozes reais de gente  que conheceu o músico. Entre outros, Paulo Moura (1932-2010), Ferreira Gullar (1930-2016),  João Donato (1934-2023), o saxofonista estadunidense Bud Shank (1926-2009), e ainda Chico, Edu, Milton, Gil, Caetano, Toquinho,  Suzana de Moraes (1940-2015) e Gilda Mattoso (estas, respectivamente, a filha mais velha e a última mulher de Vinicius). Também deram depoimentos a viúva Carmen Cerqueira (que, por falta do corpo, nunca teve direito à pensão, oficialmente não era viúva) e a moça (Malena) com quem Tenório pulava a cerca na época e  viajara com ele para a turnê que passou por Uruguai e chegara à Argentina.

A primeira parte de Atiraram no pianista é uma declaração de amor ao samba-jazz e a bossa nova. Olhar de um estrangeiro sobre um momento, entre os anos 1960 e 70, em que a moderna música brasileira não só era a melhor do mundo como  disputava o topo das paradas com Beatles e companhia – algo que, por sinal, o documentário Elis & Tom, de Roberto de Oliveira (atração do ano passado no Fest Rio e atualmente em cartaz no circuito brasileiro) também prova. Em meio a muitos criadores famosos da MPB, o genial pianista apagado “por engano” pela ditadura argentina é apresentado. Trechos de seus discos têm destaque e embalam a narrativa. Meio zen, gentil, tímido, culto, pai de cinco filhos (um ainda na barriga da mãe quando foi morto), vivendo com dificuldades financeiras no maravilhoso da música, quase desligado da política.

Na segunda parte, Harris-Goldblum-Trueba vai atrás da verdade sobre o apagamento do músico. Visita em Buenos Aires os últimos locais onde Tenório andou e foi torturado; conversa com amigos ou outras vítimas do regime militar. Em Nova York, entrevista um jornalista que denunciou em livro as barbaridades cometidas em toda a América Latina pelo país que se apresenta (até os nossos dias) como o xerife da democracia, o guardião do mundo livre. Era a Operação Condor, patrocinada pelos EUA, e que promoveu a integração das ditaduras que nos anos 1970 imperavam na América do Sul para combater a ameaça do comunismo. Como o filme reafirma, uma política de terror de Estado que torturou e executou sumariamente milhares de pessoas. Fossem opositoras ou inocentes, como aquele genial pianista de longos cabelos, barba cerrada e óculos. 

Triste demais, para chorar mesmo. Mas, belo e justo retrato do pianista quando assassinado pela ditadura. 

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

2 pensamentos

  1. Eu que agradeço, bora espalhar a trágica história de Tenório, brilhantemente contada por Trueba e Mariscal. abs

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