À la apê de Nara

Antônio Carlos Miguel encontra cantinhos, violões e milhares de canções perdidas nas plataformas

Entrávamos pela madrugada quando bateu a sensação de aquele sarau já com mais de duas horas de violões e vozes, contrabaixo, percussão e eventuais sanfona e piano remeter às histórias que lemos sobre o apartamento de Nara Leão na Avenida Atlântica. Impressão reforçada pelo fato de a anfitriã da noite também ser nascida em Vitória, assim como seu companheiro de vida e música. E ainda pela visão deslumbrante do díptico Pão de Açúcar e Morro da Urca no outro lado da Enseada de Botafogo e de uma lua minguante entrando e saindo das nuvens que começavam a se dissipar após dois dias chuvosos do outono no Rio. Esta, candidata à melhor estação carioca, tempo e “lugar para ser feliz, além de abril em Paris”.

Outono no Rio, canção de Ed Motta e Ronaldo Bastos, não esteve no repertório da noitada no lar da cantora Tamy e do violonista e compositor Francisco Vervloet, mas, o letrista também era um dos que se deliciava com tudo e teve outro de seus clássicos, Cais (este em parceria com Milton Nascimento), relido pelos jovens que se revezavam na sessão. 

Como preliminares, ‘round midnight, vozes e violões começaram a passear por Jobim, Caymmi, sambas que joãogilberteou, Milton, Gil, Djavan e demais pérolas do colar de infinitas contas-canções brasileiras. Com os informais ouvintes devidamente saciados, os também compositores, em meio a vocalises e improvisos, arriscaram mais e foram desfiando criações próprias, quase tudo desconhecido para esse rodado batucador de teclas de escrever. E, por isso, até mais surpreendente. Fala-se tanto do fim da canção, e os recordistas em views parecem comemorar isso a cada minuto em seus shows ou tik-tok-clipes cercados de 15 dançarinos e zero instrumentista. Mas, fora da grande mérdia (obrigado, visionário Ezequiel Neves), como confirmamos naquele cantinho carioca, há muita beleza solta no ar. Quase sempre acessível no seu app de streaming favorito. A questão é como encontrar, saber desses tantos autores e intérpretes dispersos nas nuvens.

Em meio ao prazer, e vício da profissão que me sequestrou, anotei os nomes de alguns daqueles que não conhecia. Dois pelos menos com passagens por The Voice, mas, como nunca acompanhei o programa, tal referência não me ajudara. Beirava as 5 da madrugada quando saímos, mas, depois, ficamos sabendo que a música prosseguiu até 8h30.

Capa do álbum de Tunico, lançado pelo selo inglês FarOut

No fim da manhã seguinte, fui conferir nas plataformas os discos de cada um. E, principalmente o de Tunico, álbum instrumental lançado no fim de 2022 pelo selo inglês FarOut, manteve a surpresa. Compositor, violonista e saxofonista de 26 anos, filho do finado pintor Guilherme Secchin (outro capixaba que vivia no Rio, que participa postumamente com o quadro usado na capa do disco), ele avança na praia do samba-jazz e do baião, ainda com referências que transitam por Hermeto, Egberto e companhia.

Também passaram pelo teste e foram adicionadas à biblioteca, gravações de Matu Miranda (cantor de belo timbre e muitos recursos), Giuliano Eriston (este, vencedor de uma edição do Voice) e Mariana Volker (outra ex-The Voice, cantautora e pianista). Mesmo que estes, em disco, soem mais convencionais, talvez produções mirando um mercado que não existe mais. Essa turma, outros que não identifiquei e ainda gente como o violonista Cello Cascino e o já consagrado acordeonista gaúcho Bebê Kramer (que também tocou contrabaixo), foram os responsáveis pelos muitos momentos de espontaneidade e epifania. Os tais improvisos e vocalises em músicas que se alongavam ao sabor do momento.

Ambos de Vitória, Tamy e Francisco voltaram a morar no Brasil com duas filhas pequenas um pouco antes da pandemia, após quase uma década em Montevidéu. Na capital uruguaia, eles promoviam uma informal ponte entre as culturas musicais dos dois países, incluindo trabalhos com os mestres Hugo Fattoruso e Ruben Rada. Os dois participaram de um dos últimos discos de Tamy, Parador Neptunia, de 2017, gravado no Uruguai.

Vervloet, que conhecia como compositor, mandou bem como violonista e cantor. Na manhã seguinte, também fui reouvir Touro indomável parceria dele com o mineiro César Lacerda que já me encantara ao conhecer no disco deste, Paralelos & infinitos (lançado em 2015 pelo selo Joia Moderna). Continuava forte, mas, domesticada demais se comparada ao que experimentara no sarau. Ali, como comentei com o autor da melodia, remetia ao clima de um de meus álbuns de cabeceira, If I could only remember my name, o primeiro solo de David Crosby, editado em fevereiro de 1971, fruto dos saraus lisérgicos da época nos vales de Los Angeles e captados nos estúdios sem perder a espontaneidade.

Se tivesse uma gravadora, faria uma série Tamy & Francisco sessões, com convidados novos, mais participações luxuosas, como a de Bebê Kramer, e quem mais puder e chegar.

Ainda sobre canções inéditas, quem procurar vai achar muita gente nova ou madura ou velha fazendo grande música. Juntando-se aos citados acima, poderia listar cantores e compositores como Breno Ruiz, Zé Manoel, Glauco Lourenço, Luisão Pereira, Lili Araújo, Luedji Luna, Julia Wein, Miriam Marques, Edu Aguiar, Xênia França, a banda Bala Desejo, e tantos e tantos mais. Quem navegar, talvez com bússolas, mapas e GPS, acha.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

4 pensamentos

  1. É uma pena que, hoje em dia, ocorra de algumas pessoas (de ouvidos mais exigentes) precisarem se assustar para que constatem que ainda há gente fazendo música realmente boa. Uma pena porque esses artistas da música não estão alcançando mais um público mais amplo e plural. Não lhes dão muitas oportunidades para isso. E quando as oportunidades surgem, normalmente vêm com restrições de idéias criativas. Isso parece acontecer porque pulverizaram a boa música, abrindo amplo espaço para outra, de caráter imediatista, que se basta na forma de um entretenimento de massa. Quando criaram o streaming e, já antes, as emissoras de tv optaram, regidas por interesses comerciais, a propagar quase que somente música de pouco conteúdo, seja no quesito letra quanto na formatação sonora (instrumentos e arranjos), as grandes idéias musicais foram para baixo do tapete. Se antes tínhamos os festivais que valorizavam a nossa música e exigiam no processo criativo, e as lojas de discos, onde, de forma livre, o apreciador da música percorria, a seu gosto, pelas sessões da MPB, rock, clássica, instrumental, jazz, new age, sertanejo etc, na busca por novos lançamentos de seus músicos preferidos, novidades e álbuns clássicos e representativos de fases da história da música, e, ainda, as rádios apoiavam uma difusão mais plural e também com mais qualidade, hoje cada um que não esteja navegando nessa vibe atual tem que se esforçar para saber em que lugar dessa famigerada nuvem se há de encontrar aquilo de que se gosta. Tiraram a pluralidade do ar sob o pretexto de uma falsa democratização musical, que só fez a balança pender fortemente para o lado do prato onde se amontoa tudo aquilo de qualidade questionável na música. Hoje, quase não nos encantamos mais com a audição que possa chegar, trazida de algum canto não reparado, e de forma expontânea, de uma música que nos alcance. Isso, quando acontece, produz logo uma surpresa pra lá de agradável, pois nos desacostumamos, uma vez que nos encontramos presos ao oferecimento de uma música de qualidade suspeita. Então, cada um, solitário como um hermitão, que garimpe em tesouros próprios aquilo que há de gostar, ainda que preso em épocas passadas, ou busque por novidades nas plataformas de seu gosto pessoal.

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