Novos clássicos: Senhorinha

Antônio Carlos Miguel conta como, com mais de 30 regravações desde sua estreia em 1986, a modinha de Guinga e Paulo César Pinheiro encanta sem parar

Para ser lido ao som de Rita Payés em Senhorinha

Nesses tempos de música tiktokada, zilhões de views no YouTreco, instaseguidores, amizades fcbkianas e demais indicadores e trending topics, o que faz de uma canção um clássico?

Pergunta suscitada por mais uma nova gravação de Senhorinha que bate fundo. Nem tão recente assim, lançada dois anos e meio atrás pela jovem cantora (e trombonista) catalã Rita Payés (então aos 19 anos) e a violonista Elizabeth Roma no álbum Imagina.

Sim, a canção-título e de abertura desse que é o disco de estreia de filha e mãe é outra possível novo clássico. Imagina e Senhorinha, valsa e modinha, soam como parentes, mãe adotiva e filha. Algumas frases da música de Guinga  parecem se inspirar na de Tom, mas, as melodias seguem caminhos diferentes. Uma das primeiras composições de Antonio Carlos Jobim, ela veio ao mundo  dos sons gravados como Moonlight Daiquiri em versão orquestral do maestro Léo Peracchi, lançada pela Odeon em 1958. Uma valsa que permaneceu esquecida até, em 1983, ganhar letra (e novo nome) de Chico Buarque e, nas vozes de Djavan e Olivia Byington, ser incluída na trilha sonora de Para Viver um Grande Amor (a adaptação cinematográfica dirigida por Miguel Farias Jr. para o musical Pobre Menina Rica de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes). Desde então, Imagina ganhou muitas novas gravações, mas, se ficarmos apenas no critério numérico, menos do que tantas na obra coalhada de clássicos de Tom (ou de Chico) – para ficar apenas em exemplos entre as parcerias dos dois existem os standards Retrato em Branco e PretoSabiá e Olha, Maria.

Contabilidade e devaneios à parte, voltemos à musa de Guinga & Paulo César Pinheiro candidata a clássico. É uma Senhorinha com jeito de anciã, uma modinha, o gênero musical que veio dos salões de Portugal para o Brasil nos séculos 18 e 19. E, assim como a valsa e  a polca, virou uma das fontes para o choro e a canção popular brasileira, sem nunca sair de cena. Modinhas atravessaram o século 20 e continuam sendo feitas no atual , como provou o jovem pianista, compositor e pianista paulista Breno Ruiz (com letras de PC Pinheiro) no álbum Cantilenas Brasileiras (2016). Estilo eterno, mas, que pode soar antiquado para alguns. Impressão que é reforçada pela temática da letra, aparentemente, feita por encomenda para a trama de novela de época. Em 2009, regravada por Nana Caymmi, Senhorinha apanhou feio de um amigo jornalista roqueiro (daqueles que gostam até de hair metal) que decretou ser a joia de Guinga & Pinheiro o maior tropeço do álbum Sem Poupar o Coração. Além de criticar a composição “tortuosa”, detonou a “pieguice”, o sotaque rural e o abuso das rimas com a partícula “inha”. OK, gosto se discute, mas, nesse caso, a repetição é um recurso estilístico, daí a sequência de… “senhorinha,  prenda minha, sombrinha, modinha, sinhazinha, palhinha, linha, adivinha, andorinha, princesinha, carochinha, madrinha, rainha, mocinha, marinha, vizinha, camarinha”.    

Um post de Nelson Motta encantado com Rita Payés despertou a curiosidade pela nova intérprete, logo saciada nesse admirável mundo do streaming. E os dois discos de filha e mãe, Imagina (2019) e Como la Piel (2021), justificaram o entusiasmo. Principalmente o primeiro, no qual a música brasileira diz presente em seis das 12 faixas: ao lado de Imagina e Senhorinha estão Melodia SentimentalEu sei que vou te amarA Rita e Carinhoso. O leve sotaque da cantora é um charme a mais para as canções de Tom & Chico, Guinga & PC Pinheiro, Villa-Lobos & Dora Vasconcellos, Tom & Vinicius, Chico Buarque e Pixinguinha & João de Barro. Imagina é um álbum que ficaria bem no escaninho de MPB, mas, também está confortável no de jazz catalogado pelo tocador de streaming. A voz límpida e cool de Rita e seu trombone têm como companhia o violão clássico de Elizabeth, passeando ainda por três vindas da Argentina (Alfonsina y el mar, de Ariel Ramirez & Félix Luna;  Algo contigo, de Chico Novarro; e Oración del remanso, de Jorge Fandermole), e uma de cada de Cuba (Drume Negrita, de Ernesto Negret), Espanha (Porque llorax blanca nina, da própria Rita e em seu idioma catalão) e EUA (If the moon turns green, de Bernard Hanighen & Paul Coates).

A agora internacional Senhorinha deu as caras em 1986, então com o nome de Sinhaninha, na voz de Ronnie Von, na trilha da novela Sinha Moça. Dez anos depois, sem a letra de PC Pinheiro, brilhou no álbum Disfarça e Chora (1996), do saxofonista Zé Nogueira. Em 1999, a letra reapareceu na voz de Mônica Salmaso, no disco Voadeira. E desde então tem rodado o mundo. Em 2003, voltou nas mãos e nas cordas de nylon e vocais de Guinga , em seu sexto álbum, Noturno Copacabana. E não parou de ser regravada, a começar pelo próprio Guinga, em discos divididos com outros artistas. Em 2007, num álbum feito na Itália, Dialeto Carioca, com participação do clarinetista Gabriele Mirabassi; dois anos depois, no que fez com o clarinetista Paulo Sérgio Santos (Saudade do cordão); e ainda com a cantora portuguesa Maria João (Mar Afora, 2015);  o violonista gaúcho Vagner Cunha (na voz da também gaúcha Anaadi, Depois do sonho, 2018); e o cantor gaúcho Dudu Sperb (Navegante, 2019). Há também, em Francis & Guinga (2013), um encontro com A noiva da cidade: Guinga canta a música de Francis Hime e Chico Buarque, que é emendada a Senhorinha na voz de Francis. Seis anos antes, em Alma música, ao lado de Olívia Hime, Francis citara Senhorinha em faixa que juntou A Ostra e o VentoHistória antigaCanta MariaOlha MariaValsa dueto e (ufa!) outra citação, de Valsa de Eurídice. Belas companheiras como se percebe e ouve.

Quem se der ao trabalho de digitar as dez letras do título em alguma plataforma de streaming vai encontrar pelo menos mais duas dezenas de diferentes Senhorinha.

Versões instrumentais,  como a do Villa-Lobos Duo (violão e cello) no álbum The White Indian (2006); do bandolinista Hamilton de Holanda (Íntimo, de 2007); do violonista montenegrino Milos  Karadaglic (em 2009, num CD coletivo com peças para violão clássico); do violonista Mario Ulloa e do violinista Daniel Guedes no álbum Violão violino (2010); da Banda Urbana (com o clarinetista Nailor Proveta), no disco homônimo de 2012; do trompetista Stan Kessler e do violonista Beau Bledsoe em Klaus Doldingers Passaport (2013); da cravista Patrícia Gatti e do violeiro Ricardo Matsuda em  O cravo e a rosa (2016); do gaitista Gabriel Grossi e do violonista Félix Junior,  que a escolheram para abrir o disco Nascente: a música de Hermeto e Guinga (2016); do violonista André Siqueira, Solo (2019); e do violeiro de 10 cordas Bruno Sanches (em Do barroco às barrancas do rio, 2019).

E, claro, Senhorinha tem andado também por muitas vozes. A de Bel Dias,  no álbum Choro da voz (2008), com o violonista Almir Cortes;  da italiana Antonella Montrasio (disco Meu silêncio, 2008); de Zé Helder No oco do bambu, 2009); de Gisele Meira (E um verso vem vindo, 2009); e da já lembrada Nana (em Sem poupar o coração, 2009). 

A partir da segunda década do século 21 a caminhada de Senhorinha prosseguiu. Encontramos intérpretes como Priscila Barreto (no disco Madalena, 2012); o grupo italiano Os Argonautas, com a cantora Federica D’Agostino (em Navegar é preciso, 2012); o cantor Rogério Molinari, com o acordeonista Tatá Sympa, no disco Brasileiro (2019); num single lançado em 2020 por Margherita Lavosi com o acordeonista Pablo Zárate; e até na trilha sonora de uma novela exibida pela Record em 2021, Escrava mãe (na voz de Aline Muniz).

Por fim, agora em 2022, Nova, um quarteto jazz-bossa baseado em Los Angeles, também recorreu à música de Guinga e Pinheiro, na voz carregada de sotaque da espanhola Laura Vall. Está no disco Coração vagabundo, que ainda passa pela canção-titulo de Caetano, e por clássicos de Jorge Ben, João Gilberto, Dorival Caymmi, Menescal & Bôscoli.  Como se percebe, Senhorinha continua em boa companhia.

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