Bruce Henri lembra como tocar, trabalhar, conviver, conversar, negociar… com Jards Macalé foi sempre uma aventura
Para ser lido ao som de Jards Macalé e Bruce Henri em Só Morto/Burning Night

Já rodei muito por aí… Ou já virei muito frango como se diz cá em Portugal. Isso para dizer que em todos estes anos, essa pilha de décadas que se amontoam no meu histórico, eu nunca conheci nenhum outro ser humano como Jards Anet da Silva Macalé. Nem parecido. Tocar com Macalé, trabalhar com Macalé, conviver, conversar, negociar com Macalé foi sempre uma aventura, além de ser um instigante exercício mental. Não me peçam datas, só lembro que nossa primeira aventura foi no Teatro Poeira onde o Macalé tinha fechado umas datas costuradas com os dias de descanso do musical da Leila Diniz, Tem Banana na Banda. Era uma temporada para apresentar as músicas e arranjos do seu primeiro disco, Jards Macalé. Eu tocava baixo elétrico com o grupo Soma, que era a banda acompanhante/parceira. A produção era do próprio Jards, como era de costume naquela época, ainda não tinha nenhum Guilherme Araujo para ajudar os artistas – ou para atrapalhar conforme ânimos e circunstâncias.
Macalé tinha gravado um lindo repertório com músicas interessantíssimas e seus arranjos e estética começavam a fazer merecer sua reputação de anjo torto. Como tínhamos umas duas semanas para ensaiar, Macalé quis experimentar de tudo em todas as músicas. Quando chegamos a dois dias da estreia, optou por mudar tudo e recomeçar do zero. Foi um stress. Na época eu achei que era uma loucura, uma insegurança, mas aos poucos fui descobrindo que tudo que Macalé fazia era para testar limites, provocar e usar a confusão para criar, e o resultado era mesmo inesperado, único e inovador com um elegante sarcasmo, além dos arranjos arrojados e minuciosos.
Muitos insistem que Macalé era da Tropicália, mas discordo desse enquadramento. Na minha opinião ele era mais para surrealismo romântico, com influências de Varèse talvez, mas aceitava essa associação com o Tropicalismo por questões práticas. Na verdade, ele era muito mais denso.
Voltando à narrativa, no meio desses ensaios no Poeira, Macalé nos apresentou ao Lanny Gordin que fez os queixos coletivos caírem quando meteu a mão na guitarra, já tarimbado de tocar no Stardust em São Paulo. O disco seguinte do Macalé foi justamente gravado de trio com Lanny e Tutty Moreno. Grande disco! Mas antes deste segundo disco correu muita água nesse rio, fizemos memoráveis apresentações no Teatro Cimento Armado, momento do auge da contracultura carioca dos anos 70.
Macalé ainda me levou para fazer alguns shows com Gal Costa e depois acabamos juntos em Londres em 1972 onde tocamos com Caetano e com Gal, de lá fiquei em Londres para tocar com Gil. E Macalé voltou para o Rio. Pouco tempo depois, um ano ou dois, Macalé elaborou o projeto Banquete dos Mendigos. Um tour de force que só ele podia imaginar e que conseguiu realizar, apesar de suas firmes convicções anti-establishment e jeito anárquico de ser. Deu certo para surpresa dele mesmo e de todos. No MAM do Rio de Janeiro juntou praticamente todos os maiores artistas brasileiros da época, uma plateia de milhares, uns tantos agentes federais, “como era de costume naquela época” com meia dúzia de empolgados idealistas na produção, e deu tudo certo, lindamente certo e com um registro fonográfico impecável. Teria sido um salva-vidas para a precária condição financeira do nosso herói não tivesse a censura empatado a comercialização pela RCA do LP duplo por mais uns seis anos. Macalé e eu ainda tentamos nos anos 90 convencer a BMG, para quem RCA tinha passado os direitos, a nos permitir lançar o álbum em CD independente. mas, para nossa decepção, o departamento jurídico preferiu ficar com os direitos trancados na gaveta alegando que iriam lançar em breve. Nunca aconteceu… vai bicho, tentar entender…
Em 1995 fiz um projeto no qual foi realizada uma série de concertos em Búzios gravados ao vivo, e lançado em CD com o nome Búzios Live pelo selo independente Jungle Jazz. Cada faixa era de um artista convidado, Paulo Moura, Marcio Montarroyos, Mauro Senise e Raul Mascarenhas para citar alguns. Chamei Macalé para se apresentar comigo, gravar o concerto e incluir uma faixa no CD. Choveram reservas logo que correu a notícia que Macalé iria se apresentar ao vivo na Estalagem, e tivemos a honra de receber Dona Ivone Lara e Beth Carvalho, além de Castor de Andrade – ele mesmo, o chefão do jogo do bicho! – que subiu ao palco para entoar algumas músicas do Bezerra da Silva, além de Acertei no Milhar em duo com Macalé. Foi uma noite imperdível, tudo gravado, com Macalé muito feliz e nadando no seu elemento, de costas como um bom carioca, malandro. Infelizmente tivemos que excluir a faixa com Castor que à época estava passando por um momento de pequenos desentendimentos com a justiça. Em compensação registramos em duo um belo exemplar da autoria do Mestre em parceria com Capinam: Meu Amor me Agarra e Geme e Treme e Chora e Mata.
Esta foi nossa última aventura juntos e como ele mesmo escreveria para a Gal cantar “Isso faz muito tempo…”.
