Itamar Alves explica como as histórias em quadrinhos eram grandes baratos de Jards Macalé, que adorava misturar as possibilidades presta-não-presta dos heróis e demais patifes
Para ser lido ao som de Jards Macalé em Gotham City

Jards Macalé foi o primeiro dos medalhões da MPB a se apresentar em transmissão ao vivo durante a pandemia do coronavírus. Em junho de 2020, o músico apareceu sentado na sala de sua casa, deu boa noite a quem o assistia e enfiou Let’s Play That nas telas. O enquadramento fixo da câmera, o jeitão sem nove horas de Macalé e a tensão que pairava no ar daqueles primeiros meses de isolamento forçado contrastavam com a cachoeira de síncopes que ele martelava no violão. Como se fora um rebento bastardo entre Baden Powell e Jimi Hendrix, Jards imantava o Brasil com sua dialética de rigor visual e violão febril.
Medalhão não é o termo correto para o hombre – mas qual o é? Nas artes, Jards Anet da Silva transbordou e deslizou para um lugar sinteticamente multiamoroso: foi um músico altamente visual; um escritor vividamente sônico; um criador de imagens que escorriam feito uma câmera-caneta (alô, Alexandre Astruc). Porém, “transbordar” tampouco seria o verbo preciso, uma vez que Macalé ligava e desligava suas artes e danações de acordo com o tamanho que iam tomando. Se crescessem demais, ele implodia. Gostava da nota certa e do compasso justo, mesmo que pervertidos a entrarem errado – porque, daí, transformar-se-iam em acerto. “Maldito” foi o termo que circulou ao redor de sua personagem, bradado pelas bocas quentes como uma coroa em negativo – no reino do beleléu, a santíssima trindade maldita seria Itamar Assumpção, Luiz Melodia e Jards Macalé, todos mortos e fonograficamente impecáveis, especialmente nas parcerias e notas de rodapé das carreiras. Bombas de estrelas nos tacos da paixão.
A maldita encrenca, portanto, é ler os rodapés e descobrir que os camarões boiavam na sopa, mas que comê-los seria impensável para um discípulo de Moreira da Silva (o sonho) e de John Cage (quem sonha o sonho). Quando lançou 4 Batutas e 1 Coringa em 1987, uma deliciosa coleção de sambas, boleros e biscatices de alguns de seus heróis, Jards abriu com o batuta Paulinho da Viola e o zen-morrismo. Jards retarda tudo na canção, de forma a futucar o silêncio que se esconde no meio de cada compasso (“o silêncio é uma impossibilidade”, segundo Cage, uma baita provocação no coração para corações melindrosos). Uma faixa depois e ele bota Bolinha de Papel, de Geraldo Pereira, para rodar em versão joãogilbertiana – um dos vários coringas soterrados nos sulcos do disco – na qual ele acelera o andamento até que a música se dissolva. A música se torna uma tira de quadrinhos, como bandas desenhadas e cantadas em multivelocidades para conter o Aleph da música brasileira em uma canção.
Quadrinhos eram grandes baratos de Macalé, que adorava misturar as possibilidades presta-não-presta dos heróis e demais patifes. O músico fez a entrada nos palcos como artista solo defendendo sua Gotham City em 1969 – parceria com José Carlos Capinam. Vestido de morcego, dobrou a aposta de missa negra da ditadura em exercício. A música era um proto-punk que traía a sofisticação harmônica do garoto que estudou com o maestro Guerra-Peixe e afins, num movimento que, em termos sônicos, era justamente o truque visual que Batman usava para desestabilizar seus oponentes. Na década de 70, Macalé foi de Londres com os escombros do Tropicalismo, voltou transando discos solos puro-sangue e se espalhou pelo cinema brasileiro, seja novo ou macumbeiro, atuando, compondo ou agitando.
Na década de 80 começou a usar camisetas do Super-Homem – a partir dos anos 90, ele só usava as com o super logo sangrando, espólio da edição em que Kal-El morre. Melhor ainda, passou a misturar a camiseta do super com a máscara do morcego, que o deixava no “entrelugar” dos vigilantes dos quadrinhos, assim como o era entre músicos, escritores e cineastas. Jards Macalé gostava de silêncio e de velocidade, de gingar como Moreira da Silva e de se estilhaçar como Jimi Hendrix. Tanto caldo entornou na maciota, ainda não se sabe exatamente o quanto ele se espalhou pelas artes brasucas. Talvez nunca se saiba exatamente, é muito mundo.
As imagens da sala de Macalé na transmissão do Sesc em casa foram, também, uma bisbilhotada no aconchego do morcego de kriptonita. Tinha-se lá um sofá, móveis e uns bric-a-bracs nas paredes. Do que se viu, nada desbaratou o enigma. Pense: a imagem de um chinelo propositadamente deixado no chão da sala – suntuosa, nababesca, babilônica – de uma hipotética apresentação de Caetano Veloso nos moldes do Sesc em casa dispararia um sem-fim de interpretações e vaticínios sobre a intimidade do baiano. Com Macalé, necas. A sala era uma extensão do que sua persona sempre prometeu; ou seja, nada além do tudo. O absoluto ribombando no deserto do silêncio. Mas nem a pau a gente capta essas coisas do jeito certo.
