Juarez Fonseca comenta o livro de Tárik de Souza e mostra como João Gilberto perpassa toda a história, como um rio entre vales e serras
Para ser lido ao som de João Gilberto em Amoroso

O recém-lançado João Gilberto e a Insurreição Bossa Nova – Outros lados da história, de Tárik de Souza, não é “apenas” mais um livro sobre o personagem e o gênero. Sobre eles já tínhamos dois clássicos, Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova, de Ruy Castro (1990) e Amoroso – Uma biografia de João Gilberto, de Zuza Homem de Mello (2020). Tárik mergulha em profundezas nunca antes trazidas à tona, e o faz com um rigor efetivamente assombroso.
As 444 páginas do livro, publicado pela imbatível editora gaúcha L&PM, têm um peso de 888, pelo menos, tantos são os desdobramentos e informações. Mais que um compêndio de história da música, é uma verdadeira enciclopédia. Do início ao fim, passa-se por milhares – isso mesmo, milhares – de compositores, intérpretes, títulos de discos e músicas (alguns trechos das letras), com as datas respectivas das relações. O texto chega ao requinte de informar local de origem e data de nascimento/morte de toda essa população de músicos – mesmo os citados apenas uma vez.
Não por outra razão, o carioca Tárik de Souza é, para gerações de artistas e leitores, o maior crítico/repórter da música brasileira. Engajado, profícuo e sem preconceitos (como se pode saber também nos seis livros anteriores a este e outros de que participa), começou nos históricos tempos iniciais da revista Veja, militou anos e anos no Jornal do Brasil, atuou na TVE/TV Cultura/Canal Brasil, fez programas de rádio, dirigiu coleções de livros sobre música (Editora 34), participou de inúmeros documentários e filmes, criou sites (Clique Music) e publicações (Jornal de Música), e mais, mais. Enfim, tem o robusto currículo que ocupa as cinco páginas finais do livro.
Tivemos raros contatos ao vivo, mas por conta da conexão e identificação profissionais acabamos ficando amigos e, durante anos, ele participou do time de votantes das listas de melhores discos que publiquei nos jornais ABC Domingo e Zero Hora. Até o dia em que justificou que não tinha mais como escolher, pois os álbuns passaram a ser quase só digitais e não era o caso. No que concordei com ele e as páginas com os Discos do Ano terminaram. Permanecemos em contato por e-mail.
Agora, em meio à leitura do livro, perguntei a ele: “Quanto tempo levaste para anotar e escrever a Insurreição? Sei que vais responder ‘a vida toda’, mas me diz o tempo objetivo, porque o volume de informações é impressionante e não deverias ter lá naquela entrevista com João Gilberto o projeto de fazer este livro. Me diz: quanto tempo?”
(A tal entrevista, única dada por João a um jornalista brasileiro, foi publicada na Veja em 1971 e está cercada de detalhes curiosos, entre eles a proibição de que fosse gravada e sequer anotada.)
A resposta de Tárik: “Você já deu a resposta: a vida toda.
E não é força de expressão, porque logo que apareceu a bossa me liguei, ainda como apenas fanático por música e não jornalista.
Assim como ocorreu ao sambalanço (que nunca tinha sido documentado, fui o primeiro a fazê-lo) acompanhei tudo do movimento: discos, shows, resenhas e depois, já como jornalista, entrevistei seus integrantes diversas vezes (e não apenas o João).
Minha primeira ideia de um livro sobre bossa tive em 1980, e entrevistei o Laurindo de Almeida quando veio ao Brasil, pelo fato dele ter sido o primeiro a tentar fundir jazz & MPB, embora sem o êxito do pessoal posterior. Mas respondendo mais objetivamente: levei três anos com a bunda na cadeira.”
Pela amplitude, João Gilberto e a Insurreição Bossa Nova é um livro difícil de “resenhar”. Fui sublinhando passagens enquanto lia. Depois de breves digressões, Tárik crava: “Em agosto de 1946 sairia o que é considerado o marco zero da bossa nova, o samba-canção com arranjo camerístico de Radamés Gnattali Copacabana, de Alberto Ribeiro (da Vinha, 1902-1971) e João de Barro, o Braguinha (Carlos Alberto Ferreira Braga, 1907-2006)… O cantor, o carioca Farnésio Dutra e Silva (1921-1987), utilizava o nome artístico americanizado de Dick Farney, Era discípulo confesso do canto confidente de Frank Sinatra, a que seria associado em um fã-clube carioca, sediado num porão do bairro da Tijuca, na zona norte, em 1949, uma das incubadoras da bossa nova. Era frequentado por gente como Johnny Alf, Nora Ney, João Donato, Paulo Moura, Fafá Lemos, Billy Blanco, Raul Mascarenhas e Mario Telles.”
E por aí segue. Esses citados também terão mais tarde seus dados biográficos anotados, como os de TODOS os mentores, digamos, objetivos, de Tom Jobim a Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Newton Mendonça, Sylvia Telles, Tamba Trio… E volta inserindo Sinhô, Villa-Lobos, João da Bahiana, Pixinguinha, Noel Rosa, Cartola, cantores e cantoras dos anos 40/50/60, Mário Reis, Orlando Silva, Agostinho dos Santos, Lúcio Alves, Dolores Duran, Maysa, e Billy Blanco, Luiz Bonfá, Baden Powell, Dorival Caymmi, Nara Leão, Jorge Ben, Eumir Deodato, Sérgio Mendes…
E de repente os pós-bossa anos entram na parada, Roberto Carlos (!), Edu Lobo, Chico Buarque, Elis Regina, Vandré, Caetano/Gil/Gal/Tom Zé e o Tropicalismo, Os Novos Baianos (abençoados por João), mais tarde Cazuza, Fernanda Abreu, Marcelo Camelo (“sobrinho-neto de Bebeto Castilho, do Tamba Trio”), Mallu Magalhães, Maria Rita (“filha de Elis e César Camargo Mariano, do Sambalanço Trio”), Paula Toller, Marisa Monte, e mais e mais… até Anitta! Ufa!
E a bossa nas várias regiões brasileiras (são citados nomes de Porto Alegre, como o Conjunto Farroupilha, Norberto Baldauf, João Palmeiro, Ivaldo Roque, Geraldo Flach, Mutinho, entre outros, sem esquecer que, trazido por Luís Telles, João viveu alguns meses na cidade). E a Era dos Festivais. E a bossa nos Estados Unidos – o concerto de 1962 no Carnegie Hall, Stan Getz, Sinatra, Tony Bennett, Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald, Bill Evans, dezenas de grandes nomes do jazz “contaminados”… Na Europa, gravada por Brigitte Bardot, Sacha Distel e mais. Na Itália. No Japão também!
E João Gilberto? Ele perpassa toda a história, como um rio entre vales e serras. O livro só se detém mais objetivamente nele ao final, quando examina disco a disco, evitando o folclore que sempre o cercou. Enfim (mais uma vez esta palavra), ao longo do livro Tárik semeia notas dissonantes contra os detratores da bossa nova, até anotar, no Post Scriptum: “Aos que teimam em olhar a bossa nova pelo retrovisor, como peça de museu, a dificuldade de fechar este livro atesta contra. Desde que coloquei o ponto final, não pararam de pipocar notícias envolvendo o gênero e seus artífices”. E dá-lhe exemplos, no Brasil e ao redor do mundo… Será que o livro vai continuar?
Entre muitas outras fontes (jornais, revistas, sites), Tárik leu 134 livros para chegar a este, que inclui a histórica entrevista com João e conversas com mais 33 pessoas, de Adriana Calcanhotto (o pai dela, Carlos, era baterista de um grupo bossa-novista em Porto Alegre), o citado Laurindo de Almeida, Bebel Gilberto, Carlos Lyra, Gilberto Gil, Ivan Lins, Jards Macalé, João Bosco, Joyce Moreno, Roberto Menescal, Dori Caymmi, Dom Salvador, João Donato, Alaíde Costa, Leila Pinheiro, Emicida…
Me perdoa, grande Tárik, pois ante a magnitude de teu livro, esta foi a síntese que consegui fazer. Sem citar um só título de música, cada uma tem uma história… Cito agora: Desafinado, Chega de Saudade, Garota de Ipanema, Corcovado, Insensatez, Samba de Uma Nota Só, Meditação, Samba da Minha Terra, O Pato, Doralice, Se é Tarde me Perdoa, Lobo Bobo, Wave, Águas de Março, Undiú, Falsa Baiana, Eu Vim da Bahia, Este Seu Olhar, O Barquinho, Ela é Carioca, Retrato em Branco e Preto, Eu e a Brisa…
