Itamar Alves conversa com Thomas Pappon sobre o livro O Enterro do Velho Punk e ele diz: “As histórias reais podem ser tão ricas que muitas delas nem a pessoa mais maluca poderia criar aqueles relatos”
Para ser lido ao som de The Gilbertos em Os EuroSambas – 1992/1998

O Enterro do Velho Punk terá lançamento e sessão de autógrafos em São Paulo em 22 de novembro, sábado, às 16h, na
Livraria Martins Fontes, Avenida Paulista 509.
Thomas Pappon é músico, escritor, jornalista, roteirista de rádio e cozinheiro de pratos mineiros – essa qualidade, só quando Londres dá moleza para os ingredientes. Radicado na capital inglesa desde a década de 90, quando conseguiu um cobiçadíssimo posto de jornalista no serviço internacional da BBC, seção Brasil, Thomas ficou conhecido no pop brasileiro nos anos 80 como membro da ultra cult band Fellini e como jornalista musical, especialmente durante a primeira dentição da revista Bizz. Atualmente, é o ditador em exercício da banda de um homem só, The Gilbertos.
Thomas está estreando na ficção com a coletânea de contos A Morte do Velho Punk, pela editora Seja Breve, de seu parceiro no Fellini, Cadão Volpato. AmaJazz está sempre esperta com quem toca e escreve no bananal, daí toca ligar para o bunker do descendente de alemão paulistano mais mineiro (pelo lado do coração) do pedaço. Achtung, Soldat!, nos avisou a secretária de Thomas, para que não mencionássemos nada sobre as dores nas costas do Füh… do escritor. A transcrição está aí embaixo – todos os umlauts teutonicamente checados, bitte.
Como é que foi para você escrever esse livro? Você sempre escreveu como jornalista ou como compositor, que são duas formas diferentes de escrita. E agora, escritor. Foi fácil fazer essa transição, essa terceira margem aí?
Porra, foi e não foi, meu. É engraçado isso, porque o Cadão Volpato tinha me convidado a escrever alguma coisa, né? Em outubro do ano passado, exatamente há um ano, ele falou: “Olha, vou abrir uma editora e tal, você não quer escrever? Eu queria muito que você escrevesse alguma coisa sobre discos, sobre filmes, qualquer coisa”. Eu achei legal, porque meu plano mesmo era escrever quando entrasse na aposentadoria, daqui a dois anos.
Eu estou há anos com a ideia de escrever um romance policial, um livro grosso, e eu tinha separado várias histórias legais, vários episódios, que eu poderia aproveitar de alguma forma. Aí começou a passar o tempo, o Cadão começou a pressionar. Falou, “E aí, Thomas, você já tem alguma coisa?”. Eu respondi que ainda não. Aí ele pressionou de novo. Eu já estava quase tomando a decisão de ligar para ele e falar que não ia dar. Aí ele me mandou as capas dos primeiros cinco livros. Quando eu vi as capas, eu pensei: não posso deixar passar essa oportunidade, bicho, pelo amor de deus, tem que ser agora. E isso coincidiu com a época em que o Samuel, meu filho, me contou a história do enterro do vizinho, do punk, do velho punk. E essa era uma história que quando ele me contou, eu falei, meu, isso daí eu vou guardar, porque isso daí eu quero usar de alguma forma.
O Cadão te pediu primeiro não ficção?
Exatamente, não ficção. E aí, quando eu me toquei que eu queria aproveitar essa oportunidade, era uma época em que estavam circulando algumas das histórias que eu queria aproveitar no romance policial, podia transformar em contos. E tinha essa história do Samuel, tinha umas outras histórias que um amigo meu tinha contado.
Enfim, aí eu vi que eu tinha ali umas três, quatro histórias prontas e que poderia fazer um livro de contos. E outra inspiração importante também nessa época foi um livro de um autor alemão chamado Ferdinand von Schirach. Acho que tem lançado no Brasil os dois primeiros livros dele (Crimes e Culpa, pela editora Record)
Crimes eu li em alemão. É um livro de contos em que ele basicamente relata casos que ele defendeu, que advogou em tribunais e tudo mais. “Eu quero escrever assim”, pensei. É um estilo bem seco, bem simples, bem direto, onde você só usa adjetivos ou descrições de pensamentos ou de lugares quando importa, quando é necessário. E aí, como eu já tinha o estilo e já tinha umas histórias, eu falei, porra, vou fazer um livro de contos.
E eu surpreendi o Cadão. Na verdade, quando eu mandei para ele, eu acho que ele não estava nem esperando que ia ser um livro de contos. Então, eu fiz o seguinte: peguei três dias livres do trabalho, me sentei e falei: “Bom, agora vou começar a escrever”. Você imagina a ansiedade desse momento. E o primeiro conto que eu escrevi foi o primeiro conto do livro, chamado Uma Noite Ruim, porque foi uma coisa que aconteceu comigo numa viagem para a Bolívia, e eu descrevi os acontecimentos dessa noite, e isso acabou sendo o primeiro conto. Quando eu li o conto, eu fiquei feliz com o resultado. Aí, eu levei mais dois dias para escrever o segundo conto, que é o do punk, o Enterro do Velho Punk.
Eu achei que esse havia sido o primeiro conto, porque é o nome do livro.
Não, esse é o segundo. Aliás, os contos são todos na ordem em que eles foram escritos. O terceiro conto, é o Alea Jacta Est. Você leu?
Li, é o mais Thomas Pappon da indústria musical possível, quando veio a bagagem de repórter dos anos 80.
Esse conto aí é todo inventado, tem várias pessoas inspiradoras. Essa demorou mais para fazer, eu acho que eu levei, sei lá, uns três ou quatro dias. Depois veio A Noite de 7 de Setembro. Na primeira temporada do podcast Que História, da BBC, eu fiz um episódio sobre os brasileiros que ficaram em Londres durante a Segunda Guerra Mundial. Baseado em depoimentos do arquivo da BBC, que eu tinha depoimento de umas quatro pessoas que estavam aqui nessa época, exceto o Antônio Callado. O Antônio Callado chegou em 41. O depoimento dele fala de outras coisas ligadas à guerra e tal, as lembranças deles. Mas tinha um depoimento de uma mulher chamada Raquel Brownie, que eu acho que ela não trabalhava na BBC, mas ela era mulher do Aimberê, que era o apresentador, foi o primeiro apresentador do serviço em português da BBC. Ela fala dessa festa, que foi justamente eles estarem na Embaixada Brasileira celebrando o 7 de setembro, quando foi o primeiro ataque da Blitz. Quer dizer, a Blitz começou no 7 de setembro de 1940. E anos depois, uns dois, três anos depois, enfim, eu guardei isso, a descrição dela, essa coisa toda de que eles foram para o abrigo, tudo isso aconteceu. Depois eles subiram para cima para ver o espetáculo.
Eu adorei a descrição do jantar e gostei muito de como você situa aquele jantar. Outra coisa interessante, você colocou o Alberto Cavalcanti ali. Eu achei do cacete isso aí, o Cavalcanti fez filmes ingleses nessa época.
Sim, ele estava nesse jantar. E os brasileiros que ficaram aqui, a maioria eram o pessoal que trabalhava na BBC, alguns intelectuais, o Pinheiro Neto, que é um advogado, o cara que fundou o escritório Pinheiro Neto, era bem moço, ele estava nesse jantar também. Eu acho que ele descreve esse jantar também num livro de memórias que ele publicou. O personagem Eduardo é inspirado num cara chamado Edmundo P. Barbosa, e existe uma biografia sobre ele. Eu li trechos dessa biografia porque eu ia fazer uma reportagem antes da Covid para BBC Brasil sobre um episódio que pouca gente conhece no Brasil, que quando o Mussolini declarou guerra contra a Grã-Bretanha, ele pediu para o Brasil representar os interesses da Itália no Reino Unido. Isso está descrito no conto também. O Edmundo P. Barbosa foi o cara que comandou isso. Quer dizer, tudo isso é inspirado em coisas que realmente aconteceram. Já o resto, não.
O resto você montou, né?
O resto eu montei, sim. Essa história do Muniz de Aragão também está no livro desse cara, de que ele teria dedurado a Olga Benário para o Gestapo. Esse conto, na verdade, foi muito inspirado nos livros do Robert Harris, que é um cara que eu gosto. É o cara que escreveu Conclave, que virou filme. Ele escreveu vários livros deles que viraram filme. O último do Polanski, O Oficial e o Espião. Aqui, o livro, o filme, é impossível você conseguir ver ele na Inglaterra, porque o Polanski é cancelado aqui no Reino Unido. Eu tive que comprar o DVD na Alemanha para poder assistir ao filme. Mas eu tinha lido o livro. E aquele outro lá, Escritor Fantasma, que o Polanski também filmou.
Que é feito na Inglaterra, inclusive.
E também na Alemanha. É para ser Estados Unidos, mas foi filmado em Hamburgo, ali perto de Hamburgo, alguma coisa assim. Enfim, o Robert Harris, ele usava vários livros dele, ele usa fatos históricos como pano de fundo para algum mistério, alguma história ligada a algum personagem da história e ele imagina ali um acontecimento. E eu quis fazer isso também.
Aí vem um conto chamado Um Erro Terrível, que é baseado numa história que um amigo meu me contou, uma história que aconteceu. Mas essa história daí eu preferia que não fosse dito que ela realmente aconteceu.
Os últimos dois contos, um é inventado mesmo. Tem elementos da vida do meu pai no Doutor Velastane. O Doutor Velastane é mais velho que o meu pai. Ele chegou no Brasil antes do que o meu pai. E ele não lutou na Wehrmacht, na Waffen-SS. Foi totalmente inventado, a paixão por música, por cinema, meu pai tinha nada disso. Ele frequentou a Stardust, a boate, porque eles moravam no Largo do Araújo. Mas era mais por causa da minha mãe.
Principalmente quadrinhos, a paixão do personagem.
Pois é, meu pai não tem nada a ver… Mas é engraçado essa história da Escola Panamericana de Arte. A gente morou na Rua Pará em Janópolis por dois anos, quando eu era pequeno. E eu lembro de sempre passar nessa Escola Panamericana de Arte. A sede ficava lá, na esquina da Avenida Angélica. O que eu não sabia é que o Hugo Pratt tinha sido professor mesmo da Escola Panamericana de Arte.
Já o conto do velho punk, esse é totalmente real? Tudo ali é uma descrição de algo que realmente aconteceu?
Sim, sim. Exatamente.
Porque esse tem muita pinta de ser real, tudo ali.
É, pois é. Inclusive a guerra de lama. Coloquei ela de um jeito meio discreto. Assim, ela foi muito rápida e tal. Mas o Samuel falou que foi um negócio absurdo. Os caras estavam atirando lama mesmo, um no outro.
Esse é o único conto real do seu livro?
Esse e o primeiro. Tem coisas que são reais no último conto, que é sobre um cara, um amigo meu, que quis montar uma rede social. Ficou acho que cinco anos com esse plano. E assim, investiu tudo, grana, trabalho, captou investimentos de outras pessoas. E no final, a rede social flopou e ele ficou na merda. Mas aí tem toda uma segunda parte ali que não é exatamente uma redenção, mas é onde ele entra numa atividade intensa em que ele se confronta com pessoas, com realidades. E ele vê que as pessoas estão muito mais fodidas do que ele. Então, para ele funciona como uma espécie de redenção.
O que chama a atenção nos contos é o estilo. Eu gostei. Textos diretos, curtos. Fui olhar textos antigos seus da Bizz para fazer uma comparação. E é bem diferente. Agora, você vai direto ao ponto. Isso me parece o que você quer fazer hoje com as suas coisas. Sempre que eu tenho uma conversa com você sobre filmes, livros, quadrinhos, você é taxativo: “Ó, se tem cabecice, tô fora. Não quero saber de filmes de arte. Foda-se o Bergman” (risos). Você está querendo ir direto ao ponto?
Eu não sei se o estilo ou a vontade de escrever nesse estilo responde a uma ojeriza ao cabecismo. Eu simplesmente achei um estilo que eu acho gostoso de ler. Porque o que eu queria mesmo era fazer histórias que as pessoas gostassem, quisessem ler e quisessem passar para outras pessoas lerem e que fosse entretenimento, que fosse uma coisa não recreativa, mas uma coisa gostosa de ler.
Direta.
Exatamente. E que tenha a ver com os autores que eu gosto também. O Robert Harris, eu acho que é um cara legal de ler. O Ferdinand von Schirach, achei as histórias dele encantadoras. Eu me convenci de que boa parte da razão de eu as achar encantadoras era justamente pelo estilo. Que o estilo de certa forma prioriza o acontecimento, a ação, o que está acontecendo, os twists e torna as coisas mais absurdas, mais naturais, mais bizarras, como sendo totalmente aceitáveis, como sendo reais. E as histórias deles são reais também. Eu aprendi na BBC que as histórias reais podem ser tão ricas que muitas delas nem a pessoa mais maluca, imaginativa poderia criar aqueles relatos. Algumas histórias reais. Antigamente, quando eu começava a ver um filme que dizia “baseado em histórias reais”, eu ficava puto. Quer dizer que vai ser uma coisa meio truncada, vai ser um comportamento meio assim, vai ser uma coisa contida, não vão acontecer coisas incríveis, não vão acontecer coisas inesperadas. Eu só sei que cada conto é inspirado em coisas reais em graus diferentes. Mas muitos deles, todos eles, têm espaços… A realidade era um esqueleto, né? Alguns desses esqueletos tinham mais carne do que outros, mas o trabalho mesmo que me interessou foi preencher as lacunas. Aí entra a imaginação e também a minha influência dos quadrinhos, do cinema, do pop.
E do jornalismo, porque você falou da BBC como…
Sim, também, também, mas eu queria também criar coisas engraçadas, usar a imaginação. O Alea Jacta Est eu acho que é a expressão mais acabada disso, de usar algumas coisas assim e deixar.
O conto é muito engraçado. O popstar decadente que gosta de ditados latinos é uma puta sacada. E quanto do Ivan Lessa tem nesses contos, Thomas? Já que você era tão amigo dele.
Bom, eu li as crônicas dele, né? Eu editava as crônicas dele. Então, eu acho que tem… Talvez até num nível subliminar ou subconsciente, tem uma influência ali. Talvez no texto, talvez no senso de humor. Putz, eu não sei, viu? Ele morreu faz tempo, né? Foi em 2012, né? Eu não sei se dá para dizer que foi uma grande influência, mas eu acho que não.
Influência nesse sentido, não. Mas lembra o estilo direto e reto do Ivan nas crônicas.
Lembra? Sim. Tem essa coisa.
Eu acho que o Ivan também usava pouquíssimo adjetivo. Ele era mais mordaz. Isso é engraçado também nos seus contos, porque como as frases são curtas e são diretas, e a linguagem direta vai direto no que você quer dizer, você não recorta seu texto, você não tem saltos no tempo, nem nada. É engraçado, porque é impossível não imaginar a sua voz lendo aquilo, né?
Engraçado. O Daniel Benevides fez o posfácio do livro, e ele fala, ele também insistiu nessa ligação com o podcast, com o Que História. Ele acha que o Que História foi uma influência. Mas eu acho que as histórias, assim, todas elas têm começo, meio e um fim, e dá até para imaginar como um filme curto, como uma curta-metragem.
