Setenta anos de rock no Brasil

Em outubro de 1955, Nora Ney, uma estrela do samba-canção, foi a primeira brasileira a gravar, e cantar na Rádio Nacional, um rock. Essa história é contada por Ricardo Bandeira, jornalista mineiro que tem um livro sobre a primeira década do gênero entre nós e, no momento, trabalha na biografia de Ezequiel Neves. (A.C.M.)

Texto de Ricardo Bandeira*

Para ler ao som de “Ronda das horas”, com Nora Ney

Neste outubro de 2025, faz 70 anos que um rock’n’roll foi gravado no Brasil pela primeira vez. Em 24 de outubro, Nora Ney registrou  no estúdio da gravadora Continental “Ronda das horas”. Apesar de o título estar em português, Nora gravou a letra original em inglês de “(We’re gonna) Rock around the clock” (Max C. Freedman e Jimmy De Knight), sucesso de Bill Haley and His Comets. Dois dias depois,  a cantora lançou o disco de 78 rotações num programa transmitido ao vivo do auditório da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro. Sua desenvoltura no idioma de Sinatra e Elvis, aliás, foi um dos motivos de seu pioneirismo involuntário no lançamento do rock no Brasil.

A gravação e a performance de Nora Ney no auditório atendiam à estratégia de divulgação de um filme de Hollywood. Mas, foi naqueles dias que o rock brasileiro ou, mais precisamente, o rock NO Brasil, deu os primeiros passos, ainda que a cantora e outros protagonistas do momento não soubessem.

A apresentação de Nora foi anunciada na coluna “Roda Gigante”, do jornal carioca “A Noite”. O pequeno texto informava aos leitores algumas das atrações musicais do programa “Passatempo Gessy”, comandado por César de Alencar. O programa iria ao ar das 21h35 às 22 horas daquele 26 de outubro de 1955, uma quarta-feira, diretamente do auditório da emissora, no imponente edifício na Praça Mauá.

De acordo com a nota, se apresentaria naquela noite a cantora “Nora Ney, com o fox ‘Ronda das Horas’, do filme ‘Sementes da Violência’”. A canção, acrescenta o texto da coluna, marcava o retorno de Nora às paradas de sucesso, em primeiro lugar.

Outro texto, publicado em novembro na “Revista do Rádio”, confirma a apresentação anunciada no jornal: “A surpresa outro dia no programa de César de Alencar foi Nora Nei (sic) cantando em inglês uma melodia que estava sendo lançada naquela semana no filme da Metro ‘Sementes da Violência’. Nora cantou o número (que é dificílimo) muito bem e já o gravou em disco Continental”.

Em 1955, a Metro-Goldwyn-Mayer  enviou à Rádio Nacional a trilha sonora de “Blackboard Jungle”, que por aqui ganhou o título “Sementes da Violência”. O filme retrata a complicada relação entre um professor e uma classe repleta de delinquentes juvenis. O carro-chefe da trilha é “Rock Around the Clock”, na gravação de Bill Haley and His Comets. Nora foi escolhida pela Rádio Nacional para lançar a música no Brasil porque transformava em êxito quase tudo que interpretava e por cantar em inglês melhor do que qualquer outro artista do elenco da emissora. 

Nora Ney, estrela do samba-canção, gravou o primeiro rock no Brasil

Nora Ney nasceu Iracema de Sousa Ferreira, em 1922, no subúrbio de Olaria, no Rio de Janeiro. Apesar de “Ronda das Horas”, nunca foi cantora de rock. A intimidade com a língua inglesa tem origem nos tempos em que frequentou o Sinatra-Farney Fan Club, entre o fim da década de 1940 e o início da de 1950, ao lado de outros admiradores de jazz e de um certo tipo de música brasileira que tinha afinidade com o gênero. O clube – que reunia fãs de dois cantores, o americano Frank Sinatra e o brasileiro Dick Farney – foi um dos embriões da bossa nova.

Foi cantando samba-canção que Nora Ney se destacou. Em 1952, gravou “Ninguém me Ama” (Antônio Maria e Fernando Lobo), sucesso que a associaria para sempre a uma vertente do gênero chamada de “música de fossa”, com melodias tristes e letras sobre desilusões amorosas. 

Um time de sonhos participou da gravação de “Ronda das Horas”. Comandados pelo maestro, arranjador e pianista Radamés Gnattali, estavam o guitarrista Zé Menezes, o contrabaixista Pedro Vidal Ramos, o baterista Luciano Perrone e o acordeonista Chiquinho do Acordeom. O conjunto havia sido formado em 1949, com o nome Quarteto Continental, para acompanhar os cantores da gravadora. Eventualmente, transformava-se em Quinteto ou Sexteto Continental, com as presenças de outros músicos.

Em entrevista concedida a este autor em 2012, Zé Menezes disse que o arranjo do primeiro rock gravado no Brasil foi de Radamés Gnattali. Radamés já havia revolucionado a maneira de executar os ritmos nacionais, sobretudo o samba, com a sua Orquestra Brasileira, criada em 1943 na Rádio Nacional. Era uma espécie de big band, mas com acento brasileiro.

Em “Ronda das Horas”, Zé Menezes usou uma guitarra acústica da marca Stromberg, fabricada à mão nos EUA e que havia pertencido ao violonista e guitarrista Laurindo de Almeida. 

O primeiro guitarrista a gravar um rock no Brasil tem uma história peculiar. José Menezes de França nasceu em Jardim, cidade cearense na divisa com Pernambuco, em 1921. Era considerado um menino-prodígio e essa fama fez com que conhecidos seus o levassem à casa do padre Cícero Romão Batista, para quem se apresentou aos nove anos e por quem foi abençoado.

Zé Menezes também é autor de um tema bastante conhecido de grande parte do público brasileiro, a música de abertura do programa “Os Trapalhões”, da TV Globo.

Não demorou para que entrassem em cena os compositores. Em fevereiro de 1957, no “Programa Paulo Gracindo”, também da Rádio Nacional, foi lançado aquele que pode ser considerado o primeiro rock composto no Brasil. De autoria de Miguel Gustavo, na voz de Cauby Peixoto,  “Rock’n’Roll em Copacabana” retrata a euforia da juventude da época com o “ritmo louco”, como diziam os cartazes de “Ao Balanço das Horas”. Aliás, a letra provavelmente se refere, sem ser explícita, ao frenesi registrado no cinema Rian, em Copacabana, onde o filme foi exibido: “Foi lá na porta do cinema, começou dançando rock’n’roll / Era de dia, ninguém via, mas fazia alucinado sol / Foi lá na porta do cinema, começou dançando rock’n’roll”.

Mas, essa é uma de tantas outras histórias da primeira década do rock no Brasil.

  • Ricardo Bandeira é jornalista e autor do livro “Baby… Rock! Histórias do Rock’n’Roll no Brasil de 1955 a 1965” (Bushido Produções, 2022). No momento, trabalha numa biografia de Ezequiel Neves.
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