Uma senhora hiper carioca de suingue, corpo, mente e sangue ótimos

Documentário de Paulo Severo e Fernanda Abreu celebra os 30 anos do influente álbum “Da lata”

A própria conta no filme que o verso “garota carioca suingue sangue bom” virou o epíteto automático para introduzi-la em qualquer ambiente. Sejam participações em festivais, programas de TV, encontros acadêmicos, manifestações politicas ou o que mais surgir para a sempre engajada Fernanda Abreu. Esta e tantas outras revelações estão em “Da lata 30 anos, o documentário”, que, na noite de ontem, teve sua sessão de gala no Festival do Rio, ocupando duas salas do Estação Net Gávea, dentro da série Première Brasil: Retratos. 

A maioria dos 33 entrevistados (pelo jornalista musical Silvio Essinger) mostra nos cabelos (ou na ausência de) brancos que, como cantou Cazuza, o tempo não para. Mas, as imagens em movimento gravadas em 2025 confrontadas com os preciosos registros do diretor Paulo Severo feitos in loco, durante as sessões de gravação de “Da lata”, em 1995, atestam que Fernanda é exceção. Seu retrato não é o daquele previsto para quem chegou à idade cantada por Lennon & McCartney em “When I’m Sixty-Four”. Não aparenta ter mais que o dobro da obra agora balzaquiana. “Da lata” foi o terceiro álbum solo, e o que a consagrou como uma das artistas mais originais de sua geração. Lugar de fala carioca, sotaque até “cariocato” na Blitz, que, devidamente adestrado pelo irmão, Felipe Abreu, também cantor e preparador vocal-musical, se tornou a voz perfeita para uma música dance realmente brasileira. Mesclando o som black anglo-americano, o nascente funk carioca e o samba das escolas, ela se reinventou, garantindo a entrada num seleto clube de criadores. Em recorte feminino, e carioca, nele já estavam Chiquinha Gonzaga, a portuguesa de nascença Carmen Miranda, Dolores Duran, Elza Soares, Joyce Moreno…; e, no século XXI, foi aumentado por Anitta e Ludmilla – estas, algumas que seguiram a trilha inaugurada por “Da lata”.

Como tudo que fez em sua carreira pós Blitz – este, o grupo que, em 1982, alertou a sempre lenta indústria da música que uma onda de pop-rock brasileiro começava a virar um tsunami -, Fernanda é a protagonista e tem total controle do documentário. Chapa-branca do bem, e que, sem ousadias narrativas, se garante pelo conteúdo. Filmado a toque de caixa durante 2025, de baixo orçamento, um dos trunfos é o material quase todo inédito que o diretor-homem-câmera guardou desde então. Tanto as sessões em estúdios de Londres (pilotadas por Will Mowat, que ela admirava como produtor do grupo negro britânico Soul II Soul)  e do Rio (o emblemático Nas Nuvens, de Liminha, que produziu a outra metade do disco), quanto as gravações dos clipes que se seguiram e  do show que, até 1997, percorreu boa parte do Brasil.

Severo mesclou trechos dessas 40 horas de material bruto com os depoimentos dos tais 33 entrevistados, quase todos com os mesmos cenário (a instalação de metal e lata remetendo à obra de Bispo do Rosário, como relembra o diretor de arte Luiz Stein, que, na época do disco, ainda vivia a parceria artística  e conjugal  de 28 anos, e duas filhas, com Fernanda), posição de câmera, enquadramento. O mais importante é o fato de todos terem tido alguma ligação com o disco. Parceiros em letra, melodia, gravação, produção, direção de arte, fotografia, figurino, coreografia, gestão da carreira, de empresários a diretores na gravadora EMI. 

Esta, há uma década absorvida pela Universal Music, uma das três multinacionais que sobreviveram à radical mudança na indústria da música gravada. Após, na entrada do novo milênio, as então chamadas gravadoras perderem o bonde da História ao tentar barrar a migração para a internet. Deram mole, dividindo de bandeja seu negócio com empresas que não criavam arte, como Apple, Spotify, Deezer, etc… Vacilo que, na última década, aumentou com a entrada de mais atravessadores no mercado, os agregadores de conteúdo musical (ONErpm, Altafonte, Lossless, CD Baby, TuneCore…). 

O parágrafo anterior saiu da rota, é tema que merece capítulo inteiro em AmaJazz, mas, não por acaso, o documentário fecha com Hermano Vianna comentando que uma obra como “Da lata” não tem vez no que virou a indústria da música. Na qual termos como “gravadora”, “fábrica de discos” perderam o sentido. Mas, como tantos outros contam, se o modelo (e a verba gasta) da então EMI Music possibilitou a existência de “Da lata”, não faltou também descrédito por parte dos executivos da gravadora. Cobranças por estourar o orçamento, botar a percussão e o gingado do samba na música de pista  (e ainda um naipe de cordas em outro momento) e os comentários de que aquele seria mais um trabalho conceitual sem resultados comerciais. 

Livro promocional que foi distribuído na época para a mídia

Lutando contra o machismo, que era muito maior então no setor, com um trabalho autoral, mas, sempre coletivo, Fernanda DalatAbreu provou que estava certa. Ganhou seu primeiro Disco de Ouro (mais de cem mil cópias), foi lançada na Europa também com sucesso. E, principalmente, 30 anos depois, “Da lata” continua um álbum inspirador. Celebração que se completa com a primeira edição em vinil (Universal Music) e um livro, também “Da lata 30 anos”, lançado pela Cobogó.

PS: para ser justo, na época, o sucesso não me surpreendeu, mas, não me lembro de ter escrito sobre o disco, sem perceber o potencial inovador. Nunca é tarde para rever avaliações.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

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