Mentiras sinceras do inesquecível Ezequiel Neves

Atração do Festival do Rio, filme de Rodrigo Pinto capta o espírito transgressor do ator, jornalista e produtor musical-conceitual

Era como um irmão mais velho de minha geração de jornalistas. Ou, como o próprio preferia, a “madrasta”, também, e principalmente, daqueles que, já como produtor conceitual, teve papel fundamental na música. Barão Vermelho & Cazuza disparam como os exemplos automáticos, mas, é lista que deve ser aumentada por, entre outros, Cássia Eller, Angela RoRo, Made in Brazil, Júlio “Gang 90” Barroso, Lulu Santos, Lobão, Rita Lee – mesmo que, contra esta, na última década de vida, tenha atirado farpas afiadas. 

Mesmo sabendo dos motivos para que o amor incondicional  pela cantora tivesse virado fúria irracional, eu e a companheira Kati  Pinto (confidente e  analista informal nessa fase final, e “vício-e-versa”, expressão que ele não se cansava de usar) discordávamos nesse ponto da virulência do vizinho com quem convivemos proximamente por três décadas. Com tato, sem outros nomes, dividirei aqui a versão alegada por Ezequiel Neves para o rompimento. Mas, antes, vamos voltar ao documentário e também ao momento em que o até então ídolo começou a se tornar o amigo tresloucado, e para sempre um guru. 

“Ninguém pode provar nada”, bordão do próprio que foi usado pelo diretor Rodrigo Pinto para nomear o documentário que estreou no Festival do Rio, oferece o retrato  de um personagem que foi fundamental para a cultura brasileira. A partir de entrevistas que filmou nos últimos quatro anos de vida de Ezequiel (1935-2010), e depoimentos (usados quase sempre em off) de amigos de diferentes fases de sua vida, Rodrigo monta seu quebra-cabeças. Longe de um filme chapa-branca, devolve à vida o irresistível Zeca, sempre elétrico e acima do tom, muitas vezes incômodo para tanta gente. Lucinha Araújo, por exemplo, não nega o papel fundamental que ele teve para a carreira de Cazuza, mas, em mais de um momento, reclama da péssima influência no estilo de vida exagerado, de como teria potencializado o mergulho do filho nas drogas e na opção sexual. 

Ninguém pode provar nada e, como Roberto Frejat comenta, seu parceiro no Barão Vermelho e Ezequiel pareciam uma entidade, se retroalimentando, para o bem e (como efeito colateral) para o mal. Sem os excessos, ambos não teriam o poder que exerceram, iluminando as vidas tanto de quem pode conviver com eles quanto de gente que teve contato com a obra. Como apregoava, citando Maiakovski, Julio Barroso (outro amigo em comum que partiu bem mais cedo): “Melhor morrer de vodka do que de tédio”. E, nesse quesito, até que Zeca viveu bastante, 72 intensos anos.

Entre os primeiros, entrevistados por Rodrigo Pinto, ainda estão a artista plástica Maria Bonomi (que ao conhece-lo em Belo Horizonte no fim dos anos 1950 insistiu que fosse para São Paulo), o cineasta e conterrâneo de “Triste” Horizonte Neville de Almeida, a fotógrafa Vânia Toledo, o músico Roberto de Carvalho, os jornalistas Maurício Kubrusly (seu editor no “Jornal da Tarde”), Ana Maria Bahiana, Jamari França, Nelson Motta…

Trechos de filmes de época – incluindo aqueles nos quais Ezequiel atuou, ambos ao lado de Paulo Villaça, o clássico “O bandido da luz vermelha”, de Rogério Sganzerla; e o censurado e nunca exibido comercialmente “Jardim de guerra”, de Neville ; e ainda o curta “Insatisfaction”, de Luiz Fernando Borges – ajudam a contar a história. Assim como cenas criadas por Inteligência Artificial e textos nos muitos veículos de imprensa nos quais praticou seu jornalismo-ficcional. Estes narrados pelo ator Emílio de Mello, que, duas décadas após a biopic “Cazuza – O tempo não para” (direção de Sandra Werneck e Walter Carvalho),  volta a encarnar na tela o produtor exagerado.

Após a sessão, para quem teve o privilégio de conviver, aumenta a saudade, mas, também a sensação de que ele continua entre nós. Quem não o conheceu pessoalmente vai ter a oportunidade de experimentar Zeca de verdade. 

Naquele início dos anos 1970, devorávamos seus textos na versão brasileira de “Rolling Stone”. A revista circulou entre 1972 e 73 e, por insistência de Luiz Carlos Maciel, fez o ator promissor que virara jornalista trocar São Paulo (e um emprego seguro na redação do finado “Jornal da Tarde”, onde completava o salário vendendo maconha aos colegas) pelo Rio. Logo virou um personagem catalizador em certos pontos cariocas. Sem telefone, celular, GPS, era fácil encontrá-lo, esfuziante nas Dunas da Gal (o ponto da praia junto ao temporário pier erguido em Ipanema para a implantação do emissário submarino que passou a jogar a dois quilômetros da costa os dejetos humanos e urbanos), nas plateias (às vezes no palco como corista ou nos bastidores como criador/produtor) de shows no Teresão (Teatro Teresa Raquel) ou na Sala Corpo e Som do MAM/RJ.

Mesmo discordando de muitas de suas avaliações, o texto era irresistível e, em sua maioria, acabava se mostrando correto. O rock progressivo, por exemplo, era quase sempre definido como “uma penteadeira de bicha”. 

Em 1976, após o fim da revista “Música do Planeta Terra”, que Julio Barroso criara bancado pelo pai e me botara como braço esquerdo, fomos convidados por Zeca a colaborar no “Jornal de Música”, que ele editava com Ana Maria Bahiana e Tárik de Souza. Sem saber que The Doors foi quem fez o então jazzófilo virar roqueiro, ofereci um texto sobre o grupo de Jim Morrison para o encarte “Rock: A História e a Glória”. Ezequiel leu e aprovou. Empolgado, contei que trabalhava numa revista de contos (editada pelos casais Laura e Cícero Sandroni e Eglê Malheiros e Salim Miguel e Fausto Cunha), perguntando se ele também fazia literatura. A resposta veio no característico tom berrado: “Garoto, tudo o que eu escrevo é ficção!”

Já vivendo com Kati, paulistana que conhecera Zeca antes de ambos se mudarem para o Rio, soubemos que ele teria que sair do “covil” – como chamava o quarto e sala no qual vivia em prédio em cima do finado Teatro da Praia, no Posto 6. Indicamos um apartamento no outro lado da rua de nossa casa, numa ladeira entre Copacabana e Ipanema, e por 29 anos ganhamos para sempre o amigo de todas horas, quase habitual comensal nos domingos. 

Seu prédio, no topo da rua que dá acesso ao complexo PPG – de Pavão, Pavãozinho e (Canta)Galo) – oferecia visão panorâmica do Atlântico, com direito ao nascer do Sol e da Lua atrás das praias oceânicas de Niterói, a ponta do Arpoador, as ilhas Cagarras. Zeca se enamorou completamente do apê em “Peacock Hills” (como passou a chamar a região), mas, quando o dono soube que Cazuza era quem pagaria a conta, o valor mais que duplicou. Eles compraram outro, um andar abaixo, e a vista continuou deslumbrante. 

Foi onde Ezequiel morou até se despedir da vida, em julho de 2010. Avesso a computadores, quando a máquina de escrever deu ruim, passou a entregar os manuscritos (até em papel de embrulhar pão) do que publicou nos últimos anos: eventuais artigos para jornais e revistas; releases ou encartes de discos. Textos com seu estilo único, transgredindo os manuais de redação, repletos de adjetivos, exageros, mentiras sinceras e bordões que se repetiam. No início, enquanto transferia para o Word, antes de encaminhar por email para os respectivos editores, tentava argumentar, podar o que parecia excessivo. Mas, aprendi com o professor Zeca: “Garoto, nunca abra mão do humor, e quando criar alguma expressão ou frase original, use e abuse.”

Ah, sobre a separação litigiosa. No início dos anos 1980, um namorado eterno (casado com mulher e filhos), por indicação de Zeca, estava finalmente empregado em atividade relacionada à música. Até ser convidado por Rita e Roberto para trabalhar em São Paulo. Semanas depois, foi demitido pelo casal e, ao voltar ao Rio, seu  posto já estava bem ocupado por outra amiga da turma.

PS: Não sei o nome de alguns dos fotógrafos, que serão adicionados caso se apresentem. Obrigado antecipadamente.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

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