Epifania de pífanos

Tárik de Souza comenta o novo disco de Carlos Malta, em que ele relê parte da obra de Edu Lobo

Para ser lido ao som de Carlos Malta em Edu Pife – Tributo a Edu Lobo

Um dos mais densos e discretos criadores da MPB – e um de seus fundadores, a partir da virada de mesa de sua Arrastão (com Vinicius de Moraes) sobre a bossa nova – acaba de ganhar um songbook a altura de sua originalidade. Edu Pife – Tributo a Edu Lobo (Biscoito Fino) relê 13 composições do autor, um carioca de origens e sintaxe musical nordestina em boa parte da obra, através dos sopros dos pífanos, um dos instrumentos mais antigos e rudimentares da cultura da região. Sim, uma das inspirações antecessoras da iniciativa é a pernambucana Orquestra de Pifanos Zabumba de Caruaru, por um século tripulada pela família de Sebastião Biano. Mas o projeto do ultratalentoso multisopros carioca Carlos Malta com sua banda Pife Muderno é exatamente levar adiante essa herança e multiplicar sua potencialidade, incorporando disrupções. Não por acaso, logo no disco de estreia do projeto, Carlos Malta e o Pife Muderno, de 1999, ele regravou o clássico de Biano (posteriormente letrado por Caetano Veloso), Pipoca Moderna.

De formação técnica sólida, capaz de expressar-se através de toda a família de saxes e flautas (incluindo o exíguo pífano ou pifaro), clarinete baixo, shakuhachi (flauta de bambu japonesa) e dizi, de origem chinesa, Malta, nascido em 1960, iniciou a carreira em 1978, acompanhando o revolucionário Johnny Alf, o pai da bossa. Em 1981, ingressou na usina sonora do iconoclasta Hermeto Pascoal, onde permaneceu 12 anos, participando de discos e excursões com o grupo. Seu trajeto individual começou em 1993, em duo ao lado do celista suíço Daniel Pezzottil, com quem gravou suas primeiras composições no disco Rainbow. Em 1994, se autodefiniu no eloquente título do solo O Escultor do Vento. Tocou com astros de várias latitudes como Lenine, Gal Costa, Paralamas do Sucesso, Ivan Lins, Guinga, Rosa Passos, Aldir Blanc, Bobby McFerrin, Chucho Valdéz, Michel Legrand, Roberto Carlos e Caetano Veloso no Tributo a Tom Jobim. Em suas próprias admirações homenageou Pixinguinha (Alma e Corpo), duas vezes Elis Regina (Pimenta, 2000, e Pimentinha, 2004), Dorival Caymmi (O Mar – Amor”, 2018) e nada menos de quatro vezes Gilberto Gil, com quem tocou durante cinco anos, fez discos e turnês europeias. Em 2022, ele revisitou a obra do tropicalista baiano nas suítes temáticas Viramundo, Tempo Rei, Primazia e Festa. Em 2004, lançou um projeto de coreto urbano à base de metais e percussão (Tudo Coreto) e perpetrou outra incursão de seu Carlos Malta e o Pife Muderno, em Paru (2005).

“Eu tinha 7 anos quando, de repente, fui tomado por um sentimento, uma emoção que nunca havia experimentado”, descreve Malta no texto de apresentação do álbum, em que diz ter sido decisivo assistir à exibição de Edu Lobo cantando sua Ponteio (com Capinan), vencedora do certame da TV Record, de 1967. “Edu é meu mestre e timoneiro desde então. Seus discos são verdadeiras aulas de arte musical, popular e erudita, tradicional e moderna”, elogiou.

Assim sendo, o encontro faiscante com a obra monumental de Edu Lobo se vale do percurso estrelado de Malta e sua devoção pelo homenageado. O Pife Muderno, que recentemente perdeu o percussionista Oscar Bolão, morto em 2022, agora traz Fofo Black na caixa, pratos e berimbau. A seu lado, o fundador Durval Pereira (zabumba, reco-reco, pandeiro). Eles dialogam com a cuíca e, em especial, o pandeiro virtuose de Marcos Suzano. Quem sincroniza a flauta (picolo, soprano, alto, baixo e pífanos) com Malta (também atuante no sax soprano e triângulo) é a mestra musical Andrea Ernest Dias, de formação erudita. A coesão inoxidável deste pequeno grupo impressiona tanto nos uníssonos, quanto nas vozes de contrapontos e dissonâncias fronteiriças do atonalismo. Ouçam a cenográfica Abertura do Circo, seguida da dupla acoplada Uma Vez um Caso (parceria com Cacaso) e Viola Fora de Moda (com Capinan), um intrincado enclave de xaxado estilizado com cantiga de cego, a todo galope.

Como se não bastasse a expertise na obra abordada, o ensemble tem adesões de peso. Como Hermeto Pascoal, “voz no copo”, “percussão corporal” e escaleta nos chicoteios do indomável Vento Bravo, parceria de Edu e Paulo Cesar Pinheiro, onde os ululantes sopros instrumentais reforçam a temática central. Jaques Morelenbaum dá um toque de rabeca nordestina a seu violoncelo em Repente (outra com Capinan), enquanto a percussão providencia um maracatu. Cantor da nova geração, Matu Miranda terça vocalizes com o próprio Edu Lobo em faixas como a obscura Água Verde (com Ruy Guerra), lenta e onírica, de percussão cadenciada e um leve scat (“ededêdê/ededê-iá”). A mesma dupla vocal imiscui-se nos pífanos vorazes e dissonantes das originalmente instrumentais Zanzibar, com percussão retumbada, e Casa Forte, desenhada por berimbau e pontuação de maracatu – outra com a adesão anárquica de Hermeto Pascoal. Em levada narrativa, mais próxima do blues, apesar do contraritmo intenso, A História de Lilly Braun (com Chico Buarque, da trilha de O Grande Circo Místico, de 1983) deságua em texturas e timbres esmaecidos. A altercação de “Bate boca” transparece no arrepio dos pífanos e numa batucada acendrada, que ganha impulso na velocista Na Carreira (outra do mesmo O Grande Circo Místico). De abertura circense, o álbum fecha no passo ainda mais acelerado do Frevo Diabo, de mais uma trilha da dupla Edu-Chico, para o balé Dança da Meia-Lua, de 1988. Uma epifania de pífanos a serviço de uma obra master.

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