Das entranhas de “Vaca profana”, “De perto ninguém é normal” circula pelo mundo
Para ler e ouvir a gravação original de Gal, em 1984
De Trieste, que vejo ser quase ao lado de Veneza, professor-filósofo-acrobata-escritor radicado em Berlim envia-me foto com a frase “Da vicino nessuno è normale”. Enigmática para quem de italiano non sapere nulla. Ao invés de pedir ajuda à IA, signalizo de volta, perguntando pelo significado e…
“Estou em Trieste visitando o antigo hospital psiquiátrico de San Giovanni, onde Basaglia trabalhou etc. A frase do Caetano virou um slogan aqui, foi impressa em várias camisetas etc. As pessoas inclusive começaram a achar que era uma frase do Basaglia.“

A imagem, aqui reproduzida, portanto, é de uma camiseta ainda na embalagem. Produzida por Lister Sartoria Sociale, ateliê cooperativo de reciclagem criativa que funciona no manicômio desativado a partir de 1978. Hoje, o Parque Cultural San Giovanni avança na revolução psiquiátrica que tem Franco Basaglia como um dos pioneiros.
A resposta de Marlon Miguel detonou uma série de troca de mensagens (incluindo com o autor da canção lançada por Gal Costa em 1984) e buscas na internet e em livros. Nesse trajeto, mais um suposto criador da frase surge, Pablo Picasso.
Então, como Jack, vamos por partes, adicionando a tréplica:
“No meio dos anos 1970, foi criado dentro do hospital um ateliê de serigrafia e começaram a fazer várias camisetas e pôsteres e tal com frases de filósofos, personalidades, etc. Em algum momento, mais tarde, a frase que chegou pela música do Caetano começou a circular e virou um dos slogans que até hoje mais circulam. O que nos disseram lá é que isso era algo que repetiam tanto que acabaram atribuindo ao Basaglia, mas que o próprio nunca teria dito essa frase.”

Melhor perguntar em email a Caetano Veloso, que devolve:
“Não sei se é de Basaglia. Aliás, eu nada sabia sobre ele – nem conhecia o nome. Não sei se essa frase me veio à cabeça ou se a ouvi em alguma conversa. Minha memória diz mais que ela surgiu em minha cabeça no meio do redemoinho que veio quando, eu em turnê na Europa, Gal me pediu uma canção pra ela gravar. Entre touradas, passeios em Portobello Road, shows e noites em hotéis, fui fazendo a canção. Mas acredito que a frase possa ser de algum pensador ou cientista e me tenha chegado em alguma conversa informal. Fui olhar Basaglia na Wikipedia e achei que ele é uma figura imensa. A gente, de vida intelectual desorganizada, pensa que toda a discussão sobre hospícios começou com Foucault, mas esse italiano parece ter sido super mais importante para o tema.”
Assim como para Caetano, o nome Basaglia também nada me dizia. Mesmo que, dois dias antes, a companheira de décadas tenha me lido um artigo (que entrou por uma orelha e saiu pela outra) sobre ele: “Neste fim de semana estava lendo exatamente sobre o Basaglia, que visitou aqui no Brasil o manicômio de Barbacena. Ia te enviar o texto que saiu no site Outras Palavras” .(Kati Pinto, em mensagem no Signal para o filho)
Quanto à frase que virou máxima, bordão, koan, tinha uma vaga lembrança de te-la ouvido ou lido em entrevista de Caetano antes de “Vaca profana” ser lançada. Esta era a faixa de abertura do álbum de Gal “Profana” (1984), e foi censurada na época. Pesquisas em acervos de jornais e googleada geral não me confirmaram essa suspeita, mas, deram outras pistas. Foi até possível rastrear quando ela virou camiseta, e também o trajeto de “De perto ninguém é normal” do Rio para Trieste, a partir de postagem em janeiro de 2017 no blog Mad in Brasil: Ciência Psiquiatria Justiça Social, mantido por Paulo Amarante. Segundo seu relato, no carnaval de 1993, a ala “Maluco Beleza” do Bloco Simpatia É Quase Amor vestiu camisetas com algumas frases.
“..um casal de amigos triestinos (…) estava conosco neste carnaval carioca. Eram o Giancarlo Carena e a Claudia Ehrenfreund, e eu os presenteei com uma das camisetas ‘De perto ninguém é normal’. Meses depois recebi de presente deles, em retribuição, a camiseta em italiano: Da vicino nessuno è normale.”
Ainda na postagem do Mad in Brasil, um ano antes, durante reunião para a organização do II Encontro Nacional de Usuários e Familiares, a delegação gaúcha chegou com dezenas camisetas com dizeres e imagens sobre a reforma psiquiátrica e a questão antimanicomial. “…Com mensagens diversas! Dentre elas destacavam-se a ‘De militonto a militante’. Assim como a “De perto ninguém é normal”, que se tornou um dos símbolos mais emblemáticos do movimento.”
Não há dúvida de que a inspiração para a camiseta veio de “Vaca profana”, mas, Amarante acrescenta o pintor andaluz como outro possível pai: “A letra faz várias referências à Espanha, inclusive a Picasso, que seria o verdadeiro autor da frase. Em algum lugar do passado eu ouvi ou li isto, que a frase seria de Picasso, mas minha memória, passando da casa dos 60, já não é tão boa! (…)O certo é que a frase foi adotada como forma de colocar em questão o conceito de normalidade, pressuposto tão fugaz, impreciso, normativo, impositivo, mas tão fundamental para o saber psiquiátrico, que distingue e classifica as pessoas!”

Independentemente do autor, “Vaca profana” foi quem popularizou e tem espalhado para tão longe “De perto ninguém é normal”. Na Espanha e na Argentina também passeiam camisetas “De cerca nadie és normal”. Enquanto, de volta à Itália, em 2024, estreou um talk show televisivo (na RAI 2) batizado “Da vicino nessuno è normale”, mas, aparentemente, de variedades, sem relação com as ideias e os ideais de Nise da Silveira, Fernand Deligny, Michel Foucault, Franco Basaglia… E, por que não?, de Caetano Veloso.
PS: A gravação original de Gal está em Spotify e YouTube, mas, sei lá por que, não entrou na Apple Music – neste app de streaming, duas outras faixas do álbum “Profana” também ficaram de fora, “Nada mais (Lately)” e “Chuva de prata”. De qualquer forma, arranjo e levada rock soam algo datadas. Prefiro a do próprio Caetano, dois anos depois, acústica e “aflamencada”, ao vivo no álbum “Totalmente demais”.
“…Ê!
Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas
Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes segue em linha reta
A vida, que é meu bem, meu mal…”
