Eterna voz de menina e piano de gente jazz e grande

Os encantos de Blossom Dearie

“Voz leve e de garota” é a definição habitualmente usada para descrever o estilo de Blossom Dearie. No entanto, mais do que “girlish”, o timbre beira o infantilizado. E, no idioma dessa nova-iorquina que teria completado 100 anos (sem as comemorações e homenagens que merece)  em 28 de abril passado, o mais correto seria rotula-la como  “light and childish”. 

Para quem não conhece, nas primeiras audições, a voz pode ser um obstáculo. Ultrapassado, há grande chance de o ouvinte ficar viciado. Caso desse lap-batucador, que, há quase três décadas, se aplica de doses frequentes das muitas gravações deixadas pela pianista e cantora de jazz morta aos 85 anos, em 7 de fevereiro de 2009.

Está quase tudo disponível em streaming, incluindo os grupos vocais nos quais fez parte. Entre estes, Les Blue Stars, que formou ao chegar em Paris, em 1952,  ao lado de, entre outros, o também pianista e cantor de jazz dos EUA Bob Dorough e da francesa Christiane Legrand. Esta, irmã de Michel Legrand, e que depois, já sem Blossom, transformaria The Blue Stars of France em The Swingle Singers. 

Em Paris, onde o grupo Blue Stars emplacou uma versão para o francês de Lullaby of Birdland, Blossom também foi vista e contratada por Norman Granz para fazer seis álbuns solo na Verve. Este, o selo que, na mesma década, lançava cantoras de jazz como Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Anita O’Day. Ainda na temporada francesa, ela se casou, em 1954, com o flautista e saxofonista belga Bobby Jaspar (1926-1963), mas, a união durou apenas três anos. 

A partir de 1956, de volta aos EUA, Margrethe Blossom Dearie voou solo e muito mais alto. A cantora peculiar era também uma pianista moderna, iniciada na música clássica desde a infância na pequena East Dunhran, lugarejo a 200 kms de Manhattan. No fim dos anos 1940, a jovem se mudou para Nova York, participando de grupos vocais e acompanhando outros cantores. Também participou da consolidação do be bop e do nascimento do cool, frequentando o apartamento do arranjador Gil Evans, por onde circulavam jazzmen como Gerry Mulligan, Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Miles Davis. Este, teria dito que Blossom era  “a única mulher branca que já teve alma”. Já o pianista Bill Evans, em conversa com outro pianista, Dave Frishberg, contou do impacto que foi assistir a Blossom, se inspirando nela para também aplicar ao jazz algo de compositores clássicos como Ravel, Debussy e Bach.

O pioneirismo da pianista, e também da cantora econômica, sem vibrato, dá as caras nos seis discos na Verve. Neles convivem standards já muito trilhados por outros grandes intérpretes e material então recente. Entre os primeiros, não há melhor introdução do que a versão ralentada lançada em 1958 para Manhattan. No mesmo período, por exemplo,  a canção de Rodgers & Hart, já com  com dezenas de gravações e regravações,  rodava na voz bem mais dramática de Dinah Washington e com a sempre perfeita e definitiva de Ella Fitzgerald (em 1956, no álbum “…sings the Rodgers and Hart songbook”).

Nos anos 1960, ela passou ainda pela Capitol e pela gravadora inglesa Fontana. Esta, na época em que viveu em Londres, na segunda metade da década, quando também mostrou o lado de compositora dividindo com diferentes letristas músicas como “Hey, John”, “Sweet Georgie Fame”, “Dusty Springfield”, “Long daddy green”, “Sunday afternoon”, “Sweet surprise”, “Inside a silent tear”, “I’m shadowing you”. PS: na primeira da lista, é Lennon o John do título.

Na década seguinte, sem espaço na indústria do disco, criou seu próprio selo, Daffodil, e pode continuar sem fazer concessões. Fiel ao jazz sofisticado que, entre outras virtudes,   dialogou com a bossa nova. Já em 1964, no álbum “May I come in?” (Capitol), fez uma das melhores gravações de “Quiet nights” (“Corvocado”). Ainda de Jobim, Blossom passeou pelas versões para o inglês de “Samba de uma nota só”, “Insensatez”, “O amor em paz”, “Meditação”, “Dindi”, “Wave” e “Desafinado”. E, em um de seus últimos álbuns, “Blossom’s Planet” (2000), gravou Ivan Lins, “Love dance” (a parceria com Gilson Peranzzetta e letra de Paul Williams).

Loura, branquela – o pai descendia de escoceses e irlandeses, a mãe, de noruegueses -, de óculos, na juventude,  parecia uma jovem secretária ou professorinha. Mas, Blossom Dearie (algo como Querida Flor, nome que ganhou pelo fato de, ao nascer, um vizinho ter entregue flores de pêssego para os pais) foi uma das grandes pianistas e cantoras do jazz. Brilhou no estúdio, nas salas de concerto e, principalmente, nos pequenos clubes. Como alguém certa vez cravou, foi “Um pássaro canoro cujo ninho era o banquinho do piano, cujo recanto era a boate”. 

Como cantou em “Try your wings” (McGregor & Preston Barr), voou. “…If you’re hungry for the sound /Of a lover saying sentimental things / Try your wings / Even the tiniest bluebird / Has to leave its nest to fly / What a bluebird can do/ You can do too, if you try”.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

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