Rock também é coisa nossa

Antônio Carlos Miguel joga alguma luz sobre livro, lançado em 2022, que traz um precioso e quase arqueológico levantamento do gênero no Brasil

The Rebels, The Avalons, The Flyers, The Lions, The Bells, The Angels, The Jordans, The Jet Blacks, The Fenders, The Hits, The Bervely’s, The Youngsters, The Lions, The Jester Tigers, Lucy Perrier & The Cupids, Dori Angiolella, The Clevers… Quem acertar o país de origem de cada um desses grupos e o período em que atuaram ganha um doce (usando uma expressão que ajuda no segundo item). Pois é e, em bom português, believe it or not, são todos coisas nossas, genuínos brasileiros que tocaram e gravaram discos entre os fim dos anos 1950 e início dos 60. 

A estes nomes, facilitando a charada, devem ser acrescentados os de gente como Nora Ney, Cauby Peixoto e… Baby Santiago, Betinho e seu Conjunto, Dixon Savannah, Tony e Celly Campello, Demetrius, Golden Boys, Renato e Seus Blue Caps, Os Vikings, Os Terríveis, Os Centauros, Os Sputniks, The Snakes, Os Lunáticos, Os Megatons, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Meire Pavão, Sônia Delfino, Prini Lopez… Eles estão entre os pioneiros de um rock feito no Brasil. Ou um simulacro de rock. No caso dos grupos, eram quase todos instrumentais, com guitarras que abusam do trêmulo (para o deleite de Quentin Tarantino) como foi padrão na então chamada surf music. Este foi um dos muitos subgêneros do então decadente rock pré-Beatles, que também incluiu coisas dançantes como twist, hully gully e boogaloo. Ao lado das guitarras (e de baixo e bateria), o saxofone ainda resistia na linha de frente.

O bizarro elenco acima está muito bem apresentado no precioso Baby… Rock! Histórias do rock’n’roll no Brasil, de 1955 a 1965. É produção independente, lançada em 2022 pelo autor, Ricardo Bandeira, e, pelo que me consta, ignorada até agora pelo que restou da grande imprensa e da mídia em geral. Jornalista mineiro, no momento, ele trabalha em uma biografia de seu conterrâneo Ezequiel Neves. Pelo rigor da pesquisa e pelo texto fluente apresentados em seu livro de estreia, Bandeira se credencia para celebrar o inesquecível Zeca das Neves. Há uns meses, fui procurado e entrevistado por ele, atendendo a recomendação do escritor Silviano Santiago, amigo de adolescência (e de toda a vida) de Ezequiel (seu personagem no romance Mil rosas roubadas, Companhia das Letras, 2014). Na ocasião, recebi o livro, dei uma folheada e comecei a ler. Mas, um bem vindo trabalho (com o rock como tema, seis títulos da Coleção Folha Rock Stars disputando espaço nas bancas que foram de jornais e revistas) me tomou as horas e só na primeira semana de 2024 pude retomar e terminar Baby… Rock!.

Coincidentemente, também editado em 2022, no pretensioso volume coletivo Rock – O livro (Hucitec Editora), participei com o capítulo Onde o rock é mais brasileiro. Nele, sustentava a tese de que um rock com identidade realmente brasileira só tinha início com Roberto & Erasmo, avançando com a Tropicália, graças a Mutantes em sua formação inicial, seguidos de Novos Baianos, Raul Seixas, Rita solo, etc… Mesmo que, em princípio, o livro de Bandeira possa trazer argumentos contrários, reunindo tantos exemplos de rock feito no Brasil, pouca coisa do que foi produzida nessa primeira década se sustenta. Ou apresenta algum sotaque diferente.

Sim, Nora Ney gravou em 1955 “Ronda das horas”. Apesar do título em português é a mesma “Rock around the clock”, com a letra em inglês da original de Bill Haley and His Comets que espalhou o gênero pelo mundo dentro do filme Blackboard jungle (ou Sementes da violência segundo o título no Brasil que ajudou a incentivar o quebra-quebra nos cinemas pela juventude transviada). Como Bandeira lembra, Nora contou com arranjo de Radamés Gnattali e a guitarra de Zé Menezes – um modelo acústico Stromberg, que comprara de Laurindo de Almeida quando este veio ao Brasil visitar a família.

Dois anos depois, Cauby Peixoto seria outro pioneiro, desta vez com um rock feito por brasileiro, “Rock’n’roll em Copacabana”. O autor? Um profissional da música então já rodado em outros gêneros, como sambas e marchinhas carnavalescas, Miguel Gustavo, o mesmo que, em 1970, criou o tema da seleção de Pelé e Zagallo (e Médici), “Pra frente Brasil”. Ainda em 1957, Cauby voltaria a insistir com “Enrolando o rock” (Betinho e Heitor Carillo), que fez parte da trilha de Absolutamente certo, primeiro longa-metragem dirigido por Anselmo Duarte, cinco anos antes de O pagador de promessas (premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962). Como Bandeira relembra, o filme incluiu outra incursão de Cauby no gênero, mas não lançada em disco, “That’s rock” (Carlos Imperial).

Aproveitando o gancho de música que ficou restrita ao filme, esse foi o caso de um dos artistas citados no segundo parágrafo, Dixon Savannah – o pseudônimo usado por Paulo Silvino para interpretar um cantor de rock no filme Sherlock de Araque. Esta, uma charada de 1957, direção de Victor Lima para os estúdios Herbert Richers, estrelada por Costinha e o Palhaço Carequinha. No trecho achado no YouTreco, temos Dixon em ação, com o autor da música “Let’s rock together”, Carlos Imperial, tocando piano: Dixon Savannah (Paulo Silvino)

Sem demérito algum, rock no Brasil desse período, quando a bossa nova começava a dar as caras e voar esteticamente muito mais alto, era coisa de comédia.

Ainda sobre os primeiros rocks brasileiros, merece crédito outro então veterano compositor, Hervê Cordovil, que fez sob medida para o filho Ronnie Cord o clássico (sim, merece) “Rua Augusta”. Lançada em 1964, resumia em sua letra os estereótipos ligados ao gênero no período: “Entrei na Rua Augusta / A cento e vinte por hora / Botei a turma toda / Do passeio pra fora / Fiz curva em duas rodas/ Sem usar a buzina/ Parei a quatro dedos da vitrine/ Legal…”.

Antes da Augusta, Hervê Cordovil (Viçosa, MG, 3/2/1914, SP/SP, 16/7/1979)  andou por samba (compôs até com Noel Rosa), baião (parceiro de Luiz Gonzaga em “A vida do viajante”), marchinha, valsa e… twist – a versão “Biquini de bolinha amarelinha”, a partir de “Itsy-Bitsy Teeny-Weeny Yellow Polka-Dot Bikini”, lançada em 1959 pelo esquecido Bryan Hyland.

Esquecidos também foram quase todos os grupos instrumentais listados no primeiro parágrafo. Beatles (e demais bandas surgidas no período) varreram do mapa tantos os pioneiros da surf music The Ventures, The Chantays, The Safaris, The Shadows (estes ingleses) quanto seus seguidores no Brasil. Alguns destes conseguiram sobreviver na Jovem Guarda, caso dos Clevers, rebatizados Os Incríveis, ou The Jordans, fazendo de tudo um pouco, até cantando, passando por sucessos de todo o tipo, Beatles, Roberto & Erasmo, “Granada”,”Peter Gunn theme”, “Winchester Cathedral”… Já The Rebels, o primeiro citado no parágrafo de abertura, lançou álbuns como Rua Augusta Zero Hora (1962) e Twist, Hully Gully, Surfin (1965). Em 1964, o grupo aparece em uma cena de Noite vazia, filme de Walter Hugo Khoury (“o Bergman brasileiro”, epíteto redutor comumente aplicado ao cineasta paulista), tocando em uma boate na Rua… Augusta. Mas, na (ótima!) trilha sonora de Rogério Duprat o que prevalece é a bossa nova instrumental do Zimbo Trio.

Estas e tantas outras curiosidades abundam no livro de Bandeira. Pode ser comprado pela internet (Amazon, por exemplo, onde também está disponível Rock – O livro), mas, incluo o email de contato disponível no volume: babyrock@bushidoproducoes.com.br.

PS: como leitores da AmaJazz já podem ter percebido, tento fugir, mas o rock me persegue e não me larga.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

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