Bela intrusa no cinquentenário de Clube da Esquina 1

Antônio Carlos Miguel viaja pelo abandonado centro carioca com Amaro Freitas & Zé Manoel  

Hoje e amanhã serão servidas mais doses de um recital delicioso e delicado. Amaro Freitas & Zé Manoel passeando por canções do Clube da Esquina. “Apenas” (com todas as aspas) os dois, piano e voz, e uma seleção que inclui, entre outras,   “Cais”,  “O trem azul”,  “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Cravo e canela”, “Dos cruces”, “Nada será como antes”, “Clube da Esquina nº2”, “Me deixa em paz”, “Tudo que você podia ser”, “San Vicente”, “Olho d’água”… 

Músicas e letras a princípio conectadas a mineiros (na verdade, reunidos naquelas esquinas mas vindos de muitos brasis) muito bem representadas por dois pernambucanos fora de série se arriscando fora de suas zonas de conforto. Um faz jazz, instrumental brasileiro que vem rodando a Europa nos últimos cinco, seis anos e também já esteve tanto no Japão quanto nos EUA; outro, MPB no melhor da acepção dessas três letras. No Clube da Esquina, Amaro troca a habitual volúpia no trato com teclas, cordas, pedais, madeiras e demais engrenagem de seu instrumento por abordagem impressionista, momentos debussyanos; enquanto Zé, como um acrobata sem rede de apoio, canta fora de seu habitual piano. Ambos arriscam e acertam.

Nascido de um projeto para homenagear os 50 anos do álbum de Milton Nascimento & Lô Borges & galera, apresentado em novembro de 2022, o tributo mostrou fôlego para mais. Agora, aos 51, a boa ideia passou num edital da Caixa, e tem rodado. Semana passada esteve em São Paulo e já passou por Belo Horizonte e Recife, esta, a terra do pianista Amaro Freitas, no mesmo estado da Petrolina do cantor e também pianista Zé Manoel. Após o bis, cada um saiu do roteiro para mostrar algo de suas carreiras. Amaro veio com “Gloriosa”, de seu próximo álbum, anunciado para março de ano que vem, o quarto na carreira iniciada em 2016, o primeiro solo. Zé, com “Não negue ternura”, música que no (acho que também) quarto álbum, Do meu coração nu, dividiu autoria e canto com Luedji Luna. 

Mas, no tributo aos 50 anos de Clube da Esquina, os dois já tinham transgredido um pouco o conceito com a intrusa “Olho d’água”, esta, a parceria de Paulo Jobim e Ronaldo Bastos que deu as caras no Clube da Esquina 2, 1978. Dois anos antes, sem letra e com outro nome, “Valse”, já tinha brilhado muito naquele que talvez seja o voo discográfico mais alto de Tom Jobim, Urubu. E, ontem, nos aniversários de 39 anos da morte de Tom e um ano e 34 dias de Paulo bebi “Olho d’água” como mais um homenagem aos saudosos pai e filho Jobim.

Vale muito a viagem até o Teatro Nelson Rodrigues, ali no Centro do Rio, e que o anúncio diz ser na Avenida República do Paraguai, 230. Sempre pensei que o endereço era na transversal, a Av. Chile, mas, realmente, de esquina (como quase todas as canções da noite de ontem), a frente do prédio dá para essa quase não rua. Paraguai, o país (que Brasil e Argentina e Inglaterra tanto sacanearam), merecia via de verdade. A avenida  que leva seu nome praticamente não tem outro imóvel, apenas atravessa os Arcos da Lapa e a Chile e chega à fantasma Rua da Carioca. Esta, em princípio preservada, com seus sobrados do século XIX, foi comprada há mais de uma década por um banco de investimento que subiu os alugueis e expulsou quase todo o comércio que ali existia há décadas. Carioca adotivo há 58 anos, confesso que não sabia o nome da rua que abriga o aconchegante teatro, perfeito para o tipo de música ouvido na noite de ontem. Mas, saí da rota…

Zé Manoel canta ‘Dos cruces’ com o pianista Amaro Freitas

PS: subo um vídeo com trecho doe “Dos cruces”, canção do espanhol Carmelo Larrea, que conheci na voz de Milton e agora ganha ecos mouros na interpretação de Zé Manoel com Amaro Freitas.