Juliano Dupont, enviado especial ao POA Jazz, faz para AmaJazz um apanhado de suas observações sobre a última edição do festival
Um bom festival tem de trazer artistas que já apreciamos e nos apresentar surpresas, revelando ao público a obra de músicos pouco conhecidos – e este compromisso o POA Jazz vem cumprindo desde o princípio. Venho acompanhando com muito tesão e ouvidos atentos todas as edições do POA Jazz e me lembro que nas primeiras edições havia quatro shows a cada noite, o que sempre me parecia excessivo, com atrasos e terminando muito tarde. Três artistas por noite é um número ótimo, que permite que prestemos toda atenção sem que um show massacre a memória do anterior. Há um limite ao que se pode dedicar toda nossa atenção, mantendo o máximo de consciência alerta e entregue à música que acontece, não apenas no palco, mas entre o palco e plateia.
O aspecto positivo é que o público menor desta edição estava muito mais atento à música e muito menos barulhento. Porque, claro, se o lado festivo de uma grande plateia pode ser animador e estimulante, pode também ser um inferno para quem quer prestar atenção na música – quanto mais gente, maior o número de bêbados loquazes, grupos de amigos confraternizando em voz alta e – o pior tipo – casais (de namorados ou amigos) que ficam conversando atrás do teu pescoço durante o show.
A oitava edição do POA Jazz foi, portanto, perfeita: público atento e boa música no palco nos atingindo com excelente qualidade sonora. Segue um comentário sobre cada uma apresentação nestes três dias de alegria musical.
The Jazz Passengers

O festival começou de maneira ortodoxa, straight-ahead. Com uma estética fundada no jazz dos anos 50/60, especialmente o hard bop, com um intervalo mais cool para relaxar os ouvidos da plateia, o Jazz Passengers apresentou peças de Hank Mobley, Lee Morgan, Benny Golson e Horace Silver.
Formado por músicos de variadas origens residentes no RS e SC, o grupo tem uma conformação mutante. Galvanizados pelo simpático e enérgico baterista porto-alegrense Bruno Braga, os integrantes desta apresentação foram, além de Bruno, o pianista baiano Yves Tanuri, o cubano Elio Vistel e o argentino Javi Contrera nos saxofones tenor, o paulistano Gabriel Barbalho no trompete e o catarinense Tiê Pereira no contrabaixo.
Bruno Braga lembrou do apagão que ocorreu na edição anterior, quando tiveram de tocar sem amplificação sonora. Assim como Art Blakey, de onde vem a inspiração do nome e do estilo dos Jazz Passengers, Bruno Braga é um baterista arrasa-quarteirão. Achei-o muito mais contido, entretanto, no hard bop dos Passengers do que no fusion da Marmota Jazz, onde, para quem já assistiu aos Marmota, sabe que ele desce o cacete (ainda que sempre com técnica e elegância) furiosamente na bateria. O Jazz Passengers são muito competentes nas suas versões, com solos aristotelicamente narrativos e bem construídos, porém, por seu evidente e autodeclarado tradicionalismo em dedicar-se a um marcado estilo do passado jazzístico, incorre no conservadorismo neo-classicista de Wynton Marsalis e cia. Apesar de minha oposição ideológica a este tipo de academicismo, foi um show excelente.
Gabriel Selvage (com Thiago Espírito Santo e Kabé Pinheiro)

Não o vi entrar no palco. Quando soou o primeiro acorde, profundo, reverberante, despertei de divagações ociosas e olhei para a figura solitária fortemente iluminada sob os holofotes – era uma espécie de Clint Eastwood violeiro num filme musical imaginário, roteirizado por Jorge Luis Borges e dirigido por Sergio Leone.
Usando da mesma estratégia que o tímido Renato Borghetti, Selvage portava um enorme chapelão bem gaudério, que escondia o seu rosto projetando sombras quando se movimentava, em transe, tocando o seu violão.
A primeira peça foi uma versão de Pantanal, autoria de Lucio Yanel, combinada a trechos de Negrinho do Pastoreio de Barbosa Lessa e La Humilde de Atahualpa Yupanqui. Na segunda, Selvage chamou Kabé Pinheiro para – mais uma surpresa – interpretar Dança das Cabeças, de Naná Vasconcellos e Egberto Gismonti. Depois, convocou a participação do excelente músico Thiago Espírito Santo (baixo), e tocaram Milonga Gitana (de Selvage) e Adeus ao Acaso (de Thiago). Na quinta música contaram com a participação do gaiteiro Guilherme Goulart. A última música antes do bis foi Samba pro Rapha, composição de Yamandu Costa.
Assim como Yamandu e tantos violonistas gaúchos, Selvage também é um discípulo de Yanel. A música apresentada por Selvage é mais uma representante da síntese entre a música brasileira e a latino-americana que Yamandu Costa internacionalizou. A guitarra argentina de Yanel, Falú, Yupanqui se combina ao violão brasileiro de Baden, Gismonti e Rabello.
Selvage é bastante original, tem voz e estética próprias, demonstrando que há uma miríade de possibilidades a partir da síntese Brasil-América Latina estabelecida por Yamandu. Se a música popular do Rio Grande raras vezes conquistou algum sucesso nacional, a música dos instrumentistas daqui confirmou os ritmos gaúchos dentro do mapa musical brasileiro.
Com o violão de sete cordas, Selvage traz muita sofisticação e virtuosismo ao seu violão pampiano e missioneiro, uma sofisticação em favor da música popular – e nem a fatiota que vestia contrastando com o chapelão bem bagual conseguiu conter tudo o que sua música contém de selvagem, bárbaro e indomável.
Ray Lema & De Wilde – Congo/França

Márcio Pinheiro antecipara algumas coisas por aqui no AmaJazz.
O francês Laurent de Wilde definiu a música que faz em parceria com Ray Lema como uma “trip around the world”. A primeira música do show foi uma homenagem ao nigeriano Fela Kuti, com uma citação durante alguns compassos de Toda Menina Bahiana (Gil), seguida por Abyssinight, um tributo ao jazz etíope. Na terceira, Wheels, peça em honra do Congo de Ray Lema, a criação do duo se revela: a música modal, cíclica, às vezes se parecendo ao minimalismo de Steve Reich ao criar uma defasagem ao longo dos compassos, até o retorno ao núcleo rítmico original.
De Wilde faz a parte mais jazzística, lembrando muito o Keith Jarrett mais palatável de Koln Concert, My Song, ou dos discos do seu quarteto escandinavo. Ray Lema se encarrega da parte rítmica, De Wilde sola em cima e, mesmo assim, de maneira bastante gravitacional em relação ao ritmo. Em Fantani, homenagem a cantora malinense Fantani Touré, De Wilde preparou o piano, não como um instrumento de tortura cageano mas como um agradável balafon, a marimba subsaariana. A música de Lema tem elementos do pop africano, com influências do compatriota Franco Luambo – que aclimatou ritmos tradicionais congoleses (antigos ou novos, como a rumba) para a guitarra elétrica – e dos mais conhecidos internacionalmente, como Salif Keita e Angélique Kidjo.
A dança é o coração da música de Lema/Wilde. É uma dança, entretanto, para quem gosta de dançar sentado, como se fosse a memória de uma antiga uma festa ou um transe relembrado como poesia.
Arthur de Faria & Tum Toin Foin

Foi o concerto com a melhor qualidade de som que já ouvi de Arthur de Faria e seu Conjunto (o gibinesco tum toin foin é um barulho de cacetada que acerta – mas não entra – na minha cabeça. O próprio Arthur de Faria tropeçou numa casca de banana ao tentar apresentar o grupo errando a correlação a que cada uma das onomatopeias se refere). O grupo tocou, além de composições de Arthur, Brilliant Corners de Thelonious Monk e uma versão de Reactionary Tango de Carla Bley. Miriã Farias, no violino, é uma presença musical simpática, Erick Endres tem grandes momentos como solista, entusiasmado e cheio de tesão musical. Adolpho Almeida Jr. fez um lindo solo em Zoika – ao ouvi-lo, diante de tanta beleza, me peguei pensando em como seria melhor se fosse num saxofone, por exemplo. O fagote é um patinho feio que nunca vira cisne – embora, talvez, seja esta feiura imanente que nos obrigue (por piedade, também) a dedicar uma atenção maior ao ouvi-lo.
Arthur não faz jazz, mas a ideia do jazz está muito presente nas composições. Além das óbvias referências a Piazzolla (explicitamente citado em algumas das obras), de uma concepção estudadamente caótica com uma planejada esculhambação ao modo de Zappa, há muito do espírito poliestilístico de John Zorn, com alguns momentos que lembram um Stravinsky relido pelo rock (ao modo de King Crimson), temperado e estruturado sobre uma massaroca de polca, tango, milongas e sambas esquisitos, todos relidos sob a estética da Sbórnia.
O que impede que a sua música seja um amontoado de coisas díspares, mero mosaico de pastiches, é esta unidade estética sborniana que expressa uma realidade social e musical, realizada com habilidade composicional e interpretada por excelentes músicos, conjuminando um monte de coisas em um bloco escalafobético – mas com muita potência e vitalidade. Ou seja, o ecletismo, a salada, o poliestilismo, a massaroca, é uma encarnação bastante realista do mundo hoje, e não menos importante, de um lugar no mundo – o nosso, aqui, agora, em Porto Alegre, em 2023.
Sumrrá – Espanha

Sumrrá deu uma apresentação que a gente assiste meio como quem para para observar um acidente. A música era viajandona, criativa, e apesar do baixista permanentemente reafirmar que fazem jazz, o Sumrrá o faz apenas na acepção mais ampla e inclusiva do termo. É uma música ao mesmo tempo cheia de riffs, numa disfarçada estética roqueira embaixo de roupas acústicas, criando climas e ambientes com pontuais estouros mais virtuosísticos. O pianista lembrava muito Elton John – mas com uma carranca séria, quase triste – em contraponto ao eloquente baixista, que apresentava e comentava as composições, todas inspiradas em leituras de divulgação científica, especialmente astrofísica. O baixista também usava pedais, ampliando o espectro sonoro do trio, que contém alguma coisa de spiritual jazz e de Sun Ra, com uma abordagem mais livre em termos estilísticos, ao modo do Bad Plus.
Sabedores de que o jazz (toda a música, na verdade) é essencialmente performance, o baterista deu um show bastante performático, dirigindo a atenção da plateia, seja estabelecendo parcerias musicais com bonecos de macaquinhos percussionistas tocando mini-tambores de brinquedo, ou pendurados no kit da bateria, seja enchendo e arranhando balões, ou atirando correntes de ferro sobre os tambores e pratos da bateria. Não há tão bom quanto uma boa música detonando nossa loucura em um ambiente de laboratório musical controlado.
Ana Karina Sebastião

O show de Karina Sebastião fez um show jazz-funk-brazuca, ao modo do Azymuth, com laivos de Banda Black Rio, timbres de sax e oberheim do Weather Report, e grooves a la Headhunters. A intenção era que o público dançasse, mas o público era do tipo mais afeito a dançar dentro da cabeça ou, no máximo, um copérnico bem comedido para evitar o torcicolo.
O melhor do show foi a versão da quasi-balada When it Rains, de Brad Mehldau.
Cleômenes Jr Sexteto

Cleômenes Jr fez um show maravilhoso, demonstrando a excelência cada vez maior como compositor, instrumentista e como líder de um grupo que não tem pudor algum em combinar diferentes estilos musicais. Cleômenes intercambiava a flauta com o sax, estabelecendo uma conversa musical estimulante com os saxofonistas Ronaldo Pereira e Tomás Piccinini sobre as camadas sonoras do piano e do teclado de Ras Vicente, criando uma sonoridade vigorosa, cheia de beleza e terna alegria.
Ana Azevedo Trio
Foi o show mais jazzístico, depois dos Jazz Passengers. Abriu com duas lindas composições próprias, Serena e Entardeceu, seguidas por Clube da Esquina 2 (Milton) e Misterioso de Monk. Depois de uma versão de Just the Two of Us (Bill Withers e Grover Washington Jr) seguiu-se uma jazzificação de temas clássicos, com Valse (2º movimento de Siciliano da sonata para flauta BWV 1031 de Johann Sebastian Bach) nas pegadas de Bill Evans, completando o bloco crossover com o Solfeggietto de C.P.E.Bach. As últimas obras foram Misses Azv (do maridão Lipe Portinho, o baixista do trio), e terminou com Elevation of Love do E.S.T. (Esbjörn Svensson Trio). O show foi excelente exceto pelo bis – A Rã de João Donato perdeu o balanço, ficando em uma versão que me pareceu flácida, sem o ritmo gostoso e nervosinho que caracteriza a composição.
Jorginho Neto Collective
Em geral, o último show de domingo já pega o público meio cansado e deprê. Então não sei se meu julgamento está com as melhoras baterias, funcionando sadia e equilibradamente. Arrisco, sob pena de ser injusto: o Jorginho Collective Trio teve bons momentos criativos com algum deslumbramento virtuosístico, mas assim como no caso de Ana Karina Sebastião, com frequência cai num funk-protocolar. Ou o jazz-funk nos põe para dançar (tarefa impossível na conformação do festival) ou nos deslumbra com muito virtuosismo e musicalidade arrebatadora – em mim, não bateu. Se tivesse sido o primeiro show da noite, minha simpatia seria provavelmente maior, alterando meu julgamento. Música não é ciência – é uma experiência vital – como namorar, ou não-namorar.
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Além de todos os méritos de curadoria ao selecionar bons artistas para subirem ao palco, o festival oferece a melhor qualidade de áudio para ouvir a música exuberante que aporta no centro de eventos do Barra Shopping, uma sala com paredes, chão e teto absorventes, permitindo que o som inunde o público com as mais agradáveis vibrações diretamente das caixas de som. Porque, além do prazer musical estrito, existe também o puro prazer de apreciar e receber no corpo toda a potente materialidade sonora criada pela música ao vivo.
Com a melhor qualidade de som transmitindo a boa música que a gente gosta, aí ocorre uma das experiências mais importantes da vida – a alegria de compartilhar a música com as pessoas em nossa volta, de testemunharmos a criação da beleza, de comungar a alegria de ouvir e fazer música.
Quando Luis Fernando Verissimo foi homenageado na 4ª edição do POA Jazz, ele agradeceu dizendo: “A música me trouxe muitas alegrias na vida. E esta é mais uma delas”. Não conseguiria resumir com mais profundidade e síntese do que isso. O POA Jazz é uma das grandes alegrias da vida. A boa música está viva.
(Todas as fotos são de Enzo Hofmann/Divulgação POA Jazz Festival)
