Receita inusitada e saborosa das esquinas

Antônio Carlos Miguel conta um pouco sobre Nada será como antes, outro documentário apaixonante sobre um Brasil que dá certo

Lô Borges, Duca Leal, musa inspiradora de Um girassol da cor do teu cabelo para, ao seu lado, o então marido Márcio Borges e Milton Nascimento, em Diamantina, em 1970

Bote num panelão pitadas de congada e religiosidade mineiras, bossa nova, Nouvelle Vague, Miles & Coltrane, Beatles & Genesis & Yes, Ravel & Debussy, samba, batuques dos terreiros afro-cariocas, violas caipiras, sons ciganos do leste europeu. Misture e cozinhe em fogo lento. O que parece ser uma receita para lá de complexa, a princípio indigesta, resultou em uma das mais saborosas. Brasil musical e poético que não para de alimentar gerações ao redor do mundo.

Exibido no Festival do Rio, dentro da Première Brasil, Novos Rumos Longa Metragem, Nada será como antes, direção de Ana Rieper, é documentário musical que decupa minuciosa e carinhosamente o universo do chamado Clube da Esquina. Quase todos os principais mestres dessa cozinha cordon bleu participam, relembrando casos e dando detalhes técnicos. Estes, compreensíveis até para quem pouco conhece de teoria musical. Robertinho Silva, por exemplo, conta como, iniciado desde criança nas batidas do candomblé dos subúrbios do Rio, entendeu o peculiar passo dos mineiros a quem se juntou na virada dos 1960 para os 70. É outro tempo, com imprevistos, buracos (ou, pedras, como poetou Drummond) no caminho, alterando o que seria o ritmo normal. Como é mostrado, Cravo e canela deve muito de sua estrutura aos batuques do baterista que tocou com todo mundo da MPB e recusou convites para se radicar nos EUA, após também gravar com jazzmen como Wayne Shorter e Herbie Hancock.

Melodias, harmonias e ritmos que de certa forma refletem o perfil montanhoso de Minas Gerais, como também é comentado no filme. Já Toninho  Horta, com a guitarra nas mãos, destrincha o solo de Trem azul que ficou para a história. Nos 17 compassos a que teve direito, ele foi da técnica sofisticada que remete ao jazzman Wes Montgmorey ao estilo de violeiros do sertão. Ronaldo Bastos, autor das letras dessas duas e também da canção que dá nome ao filme de Ana Rieper, diz que sempre também se sentiu autor das músicas feitas por seus colegas. Enquanto, em um bar de BH, Márcio Borges e Murilo Antunes contam como, ao lado de Bastos, um dava pitaco na letra do outro, pequenos detalhes que não chegavam a justificar a inclusão como parceiro, mas reforçavam o resultado final. Camaradagem era uma das marcas do informal movimento.

Antes de o termo existir, o Clube da Esquina funcionou como um coletivo de compositores, cantores, músicos, poetas. Ou um planeta, Milton Nascimento, como Saturno, rodeado de muitas luas. Ou um jardim dos caminhos musicais que se bifurcam. Pé na estrada, trem cruzando serras, música sempre em movimento.

Nada será como antes, o filme, começa na escadaria do Edifício Levy, em Belo Horizonte. Como recorda quase seis décadas depois, certa tarde, ao descer para comprar pão encomendado pela mãe para o lanche, o menino de 10 anos Lô Borges é atraído pela voz de sereia que vinha de andares abaixo, conhecendo assim o homem negro que mudaria a vida de tanta gente. Em seguida, somos apresentados a alguns de seus irmãos mais velhos, Telo, Marilton e Márcio  Borges – este, o outro da troika principal dos letristas de Milton, completada por Ronaldo e o saudoso Fernando Brant (que estreou com nada menos do que Travessia). Letristas de Milton e também de Lô, Beto Guedes,  Wagner Tiso, Toninho Horta, Nelson Ângelo, Flávio Venturini, mais alguns que dão depoimento ao amoroso e didático documentário.

Beto, que gostava de choro e clássico que ouvia com o pai Godofredo em Montes Claros, e, depois de ser aplicado por Lô e estranhar num primeiro momento, virou mais beatlemaníaco do que o parceiro. O mesmo Beto que até hoje não consegue entender e gostar de jazz. Este, o gênero que sempre encantou os mais velhos Milton, Nivaldo Ornellas, Nelson, Toninho, Novelli, Tiso, mas, que também tiveram a abertura para sentir a musicalidade dos quatro de Liverpool.

As conversas e os encontros movidos à música se alternam com imagens de arquivo. Do centro belo de Belo Horizonte nos anos 1960 aos mineiros na praia oceânica de Niterói onde se inspiravam para entrar no estúdio da Odeon e criar  o álbum duplo mais influente da música brasileira nos anos 1970, e contando.

Nada será como antes  vem se juntar a Elis & Tom (que estreou no festival do ano passado e está atualmente em cartaz nos cinemas) e também a Atiraram no pianista (a animação dos espanhóis Fernando Truebe e Javier Mariscal sobre a tragédia do pianista Tenório Jr., que abriu na semana passada a 25º edição do Festival do Rio). Prova de um Brasil que insiste em dar certo.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

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