Péricles Cavalcanti recorda aquela voz que a timidez da moça não conseguia esconder, aquele som límpido e irresistível que tomava conta dos lugares onde fosse emitido
Para ser lido ao som de Gal Costa em O Céu e o Som

Conheci Gal logo que ela veio para São Paulo! Eu tinha 17 anos e tive o privilégio de que o acaso e um primo baiano, Tenório, e seus amigos, a levassem à nossa casa (com minha irmã Zélia e meus pais), na Cidade Vargas, zona sul de São Paulo. E, de cara, fiquei apaixonado por aquela voz que a timidez daquela moça não conseguia esconder. Muito pelo contrário, aquele som límpido e irresistível tomava conta dos lugares onde fosse emitido.
Depois, ficamos amigos e nos víamos, frequentemente, na época do Tropicalismo, quando eu ainda era estudante de filosofia, na casa de Caetano e Dedé e em eventos de música. Nos vimos, também, em Londres e, depois no Rio de Janeiro.
Nada disso, no entanto, me predizia o que iria acontecer no final de 1973, na Bahia, quando num show no Teatro Vila Velha, ela cantou duas canções que eu havia acabado de compor, Dias, Dias, Dias (que gravei num single, em 1975) e Quem Nasceu?, cuja interpretação gravada ao vivo nesse show foi lançada no LP Temporada de Verão, em 1974, fazendo de mim, assim, um compositor profissional. Todo mundo gostava da música e devo, sem dúvida, à minha querida Gal, esse lançamento luxuoso. Me lembro que minha mãe, alegre, comentou comigo, que essa gravação estava na trilha de uma novela da TV. Oba, comecei a ganhar algum dinheiro com direitos autorais!
Depois, de volta ao Rio, Gal me encomendou uma canção para o disco Cantar, que ela ia gravar, com produção musical de Caetano e participação de João Donato. Foi assim que nasceu O Céu e o Som, que fiz a partir de um sonho que tive, naqueles dias, voando de mãos dadas com ela. Bem, a canção já estava pronta, não é? Foi só cantar para ela.
Logo, em seguida, em 1976, depois de uns meses em Brasília, voltei ao Rio, com uma composição que eu fiz, inspirado em Bob Marley e que era, também, um dos primeiros reggaes feitos no Brasil, chamada Clariô e quando mostrei pra Gal, sempre interessada em coisas novas, ela quis, imediatamente, gravar e lançar num single que tinha do outro lado Tigresa de Caetano. Para se ter uma ideia da novidade que era, os grandes músicos que gravaram com ela ainda não conheciam a “levada” do reggae e fizeram um arranjo muito bonito, mas longe das características principais desse ritmo jamaicano. Depois, ela incluiu Clariô no álbum Caras e Bocas de 1977, com uma versão um pouco diferente (mas ainda gosto mais da versão do single!).
E com esse novo álbum veio a gravação de Negro Amor, versão da canção de Bob Dylan (It’s All Over Now, Baby Blue) que Caetano me chamou pra fazer com ele e que, inicialmente ele pensava dar pra Bethânia cantar. Mas foi Gal quem se apaixonou por ela e fez a interpretação que a tornou famosa. Recentemente, ela regravou num bonito dueto com Jorge Drexler!
E tem uma curiosidade. No show Caras e Bocas, havia uma outra música minha, Canto Maneiro (que depois gravei no álbum Canções), com a qual Gal abria lindamente o show, cantando A Palo Seco.
Bem, décadas se passaram sem que ela gravasse mais nenhuma canção minha, seja porque passamos a nos ver muito pouco (ela na Bahia e eu em São Paulo), seja por questão de opção de repertório. Já morando em São Paulo, em 2015, Gal me fez uma outra encomenda: uma versão de Back to Black, sucesso de Amy Winehouse, que fiz mas que, por razões que nunca entendi direito, ela acabou não gravando. Mas eu tenho cantado Eu no Breu (há alguns vídeos no Youtube) e, mais recentemente, Ana Carolina, fez uma bela interpretação dessa versão, num de seus shows.
Até que em 2018, quando eu estava preparando o repertório de meu EP Clássicos Daora, me veio a ideia de convidá-la para participar de uma faixa, já que nunca antes cantara em meus outros álbuns, sendo ela tão fundamental na minha vida e carreira como músico-compositor (o mesmo fiz com meu mestre-amigo Gil nesse pequeno álbum – Caetano já havia participado de Canções, meu primeiro disco).
Então, ela veio e foi uma noite linda e amorosa, quando, além de gravar, ela jantou comigo e Lídia, e conversamos e rimos muito!
E quanto a essa gravação, da canção Karaokê Total que, embora eu não tenha composto para ela, a letra fala, também, da maneira como a vejo, fico muito feliz que tenha sido, talvez, entre suas mais recentes, aquela em que a sua voz foi menos “embelezada”, intencionalmente, na mixagem e pós-produção. E, assim, ficou como um “retrato” realista, daquela noite, nos seus 73 anos.
“Quem nasceu fui eu, quem nasceu, foi você!”
Ô Gal, vou te amar sempre!
