Benditos malditos

Os autores e as obras de uma geração que se identificava pela circunstância histórica e na paixão pela liberdade existencial

Para ser lido ao som de Gilberto Gil em Jeca Total

Jorge Salomão em foto de Antônio Carlos Miguel

Jorge Salomão (1946-2020) era também Jota Salô, parceiro de Marina Lima, Roberto Frejat e Dulce Quental, inspirador de Gil (“Jeca Total deve ser Jeca Tatu Jorge Salomão”, cantou ele em Jeca Total) e Caetano, figura constante em performances culturais no Rio de Janeiro e em São Paulo. Poeta, videomaker, letrista ou, como se definia, “mixer de informações”, Jorge Salomão só lançou em 1994 seu primeiro livro, Mosaical. “São coisas, anotações, poesias e letras de músicas”, explicava. Podia parecer uma iniciativa extemporânea, mas Jorge tinha a convicção de que o livro havia chegado na hora exata: “No momento em que estes escritos ganharam corpo, eles se transformaram num produto acabado”.

O atraso no lançamento – de aproximadamente umas duas décadas – talvez se explique pelo fato de Mosaical ser o rebento temporão de um estilo literário que esteve muito em voga no final dos anos 60, início dos 70, reunindo delírios escritos como Me Segura que Eu vou dar um Troço (1972), do irmão de Jorge, Waly (1943-2003), Negócio Seguinte: (1981) e A Morte Organizada (1978), de Luiz Carlos Maciel (1938-2017), Deus da Chuva e da Morte (1962) e Fragmentos do Sabonete (1973), de Jorge Mautner (1941), Catatau (1975), de Paulo Leminski (1944-1989), Panamérica (1967), de José Agrippino de Paula (1937-2007), e uma pequena obra-prima Os Últimos Dias de Paupéria (1973), do gênio tropicalista Torquato Neto (1944-1972). Quase todos já morreram – a exceção é Jorge Mautner – e seus escritos em muitos momentos estiveram perto da extinção. Salvaram-nos algumas atitudes audaciosas de determinadas editoras que relançaram – quase sempre em pequenas tiragens – alguns títulos.

O último suspiro foi em meados dos anos 90, na época em que Jorge Salomão “estreava” na literatura, uma feliz coincidência colocou no mercado livros inéditos de quase todos eles. O primeiro foi Mautner, com Miséria Dourada (1993). Pioneiro em 1962 com o lançamento de Deus da Chuva e da Morte, Mautner foi perseguido e censurado pelo governo militar, ficando sem publicar por muito tempo. “Esta literatura fragmentada está mais próxima dos pré-socráticos e de autores como Rainer Maria Rilke, comparava Mautner.

Logo a seguir, Waly lançou Armarinho de Miudezas (1994). Protagonista de happenings memoráveis, Waly levava às últimas consequências o ato de lançar um livro: quando publicou sua primeira obra, Me Segura que Eu vou dar um Troço, o escritor reuniu gente como Jards Macalé, Luiz Melodia e Gal Costa na Boate Sucate e arremessou os exemplares para a plateia. Estava lançado.

Por fim veio o de Maciel, Geração Em Transe – Memórias do Tempo do Tropicalismo, seu livro de memórias, lançado em 1996. A bordo da coluna Underground, no Pasquim, foi o próprio Maciel quem deu os primeiros toques numa série de assuntos que se tornariam tão caros a outros escritores desta geração – um mix de literatura beat, Jimi Hendrix, LSD, zen-budismo, bomba atômica e Ravi Shankar. “Tínhamos apenas a identificação da circunstância histórica e da paixão pela liberdade existencial”, me disse ele numa conversa em 1994. Os ensinamentos continuam valendo.

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Autor: Márcio Pinheiro

Jornalista, roteirista, produtor cultural

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