Roberto Muggiati lembra uma época de muita adrenalina e dispersão, mas sem nenhuma responsabilidade
Para ler ao som de Wynton Marsalis em Buddy Bolden’s Blues

Vou revelar aqui, em absoluta primeira mão, para AmaJazz: durante muitos anos, em fases intercaladas, eu sofri da Síndrome de Buddy Bolden, uma condição patológica que eu mesmo diagnostiquei e batizei. Charles “Buddy” Bolden (1877-1931) foi o primeiro Rei do Jazz em Nova Orleans, tocava corneta, que – antes do trompete – era o instrumento líder na improvisação coletiva da época. (Os mestiços da Luisiana – que foi colonizada por ingleses, franceses, espanhóis e americanos – chamados de Créoles, tinham acesso à música europeia e eram considerados superiores aos negros, verdadeiros párias. Negro de raiz, Bolden tocava com seu grupo nos bares da área Rampart-Perdido, nos clubes e fraternidades e ao ar livre nos piqueniques dos muitos parques da cidade. Era tudo muito divertido, mas não trazia o pão de cada dia. Depois de noitadas homéricas, Bolden trabalhava como barbeiro para garantir o leite das crianças. Complicava ainda mais sua vida ao editar um jornalzinho de fofocas, The Cricket, O Grilo. Aos 30 anos, sofreu um surto de psicose alcóolica aguda. Com esquizofrenia, a caminho da demência precoce – um cardápio completo de doenças mentais – foi internado num asilo em Jackson onde ficaria até morrer.
Aos 20 anos, em Curitiba, eu tentava abarcar o mundo com as pernas. Trabalhava num jornal à noite, estudava engenharia pela manhã, era funcionário público do Governo Lupion; tendo terminado a Cultura Francesa e a Cultura Inglesa passei a estudar alemão e japonês (!). Fiz o serviço militar no CPOR, na arma de engenharia. Estudava saxofone. Frequentava a Grande Noite Curitibana do boom do café. Todo dia chegavam aviões carregados das mais bonitas prostitutas argentinas, com seus casacos de pele agarradas eroticamente a ursinhos de pelúcia. Eu tinha ainda uma quase-noiva que estudava no Sion, uma amante colega de trabalho e frequentava as damas da noite.
Era muita adrenalina e dispersão, mas sem nenhuma responsabilidade, cama, mesa e roupa lavada na casa dos pais. A coisa mudou radicalmente quando voltei para o Brasil casado, depois de estudar jornalismo em Paris dois anos e de trabalhar três anos no Serviço Brasileiro da BBC. Tinha já 11 anos de jornalismo, mas comecei tudo de novo no Rio, como repórter especial na revista Manchete. Uma carreira meteórica, subeditor lançando a Veja em São Paulo, editor-chefe da Manchete a partir de 1975, e publicando ainda um monte de livros, a partir de fascículos na Manchete e na Som Três.
Vivi meu “inferno astral” na transição do primeiro para o segundo casamento – a troca de uma vogal apenas, de Lina para Lena – mas que mudança! Lina era uma feminista radical e uma chata de galocha. Primeiro filho em 1980, depois a filha em 1986, encarando o “inferno das redações” e me tornando o mais duradouro editor da revista Manchete, com 20 anos nos costados. Uma aparência de sucesso, ocultando o fracasso de Bloch Editores, com suas vibrantes revistas transformadas em “house organs” da Rede Manchete de TV. Não acredito em nenhuma “entidade superior”, resumi minha Weltanschauung, (“cosmovisão” em bom português) nestas frases sucintas, fugindo à dicotomia otimista/pessimista e invocando o Filósofo Realista:
- “A vida é uma piada de mau gosto: o sujeito não escolhe nascer, outros decidem por ele. E logo fica sabendo que sua única certeza na vida é a morte. Presente de grego, não?”
- “Se a vida fosse uma dádiva, o bebê ao nascer não cairia no choro, mas sim riria de felicidade.”
- “Com requintes de crueldade: nasce nu, é pendurado pelos pés de cabeça para baixo e ainda toma um tremendo tapa na bunda…”
- “E então vai ser gauche na vida. Socializa-se à força, com um nome que não escolheu. Você gostaria de se chamar Anacleto? Belizário? Glicério? Onotônio? Ou, se fosse mulher: Eslovênia? Filomena? Luzineide? Poliana?” Pois tenho uma bronca com meu nome aparentemente banal. Meu pai, como todo ítalo-descendente do Sul do Brasil, simpatizava com Il Duce e queria me chamar de Benito. Minha mãe foi contra. Então ele me chamou de Roberto, outro nome recomendado por Mussolini. Por quê? As sílabas iniciais se reportavam às Capitais do Eixo: ROmaBERlimTOquio. No século passado eu tinha um pesadelo. Via uma lápide com um epitáfio incompleto: ROBERTO MUGGIATI, 1937- ? Temia que fechasse com 19-qualquer-coisa. Quando entramos nos anos 2000, suspirei aliviado: agora tudo é lucro. Escolhi meu epitáfio com Cole Porter: “It was great fun, but it was just one of those things”. Quando escolhi ser cremado, o epitáfio da urna das cinzas também foi tirado de Cole Porter: “It’s Too Darn Hot”. Do meu sobrenome, tirei a postura zen do caligrama MU (que ilustra esta página), “Nada” ou “não-existência”) usado no Taoísmo para expressar o vazio. Este termo foi introduzido pelo sincretismo no Budismo Chan sob a influência taoísta na China, depois durante a difusão deste último, primeiro na Coréia, no budismo sólido, e finalmente no Japão, no chamado Zen Budismo.
A Síndrome de Buddy Bolden foi superada e nada veio ainda ocupar o seu lugar – nem Parkinson, nem Alzheimer, nem demência precoce (pelo menos, que eu saiba), apenas uma mísera e dolorosa unha encravada…
