Tárik de Souza escreve sobre Mantra Concreto, obra que promove o encontro entre Vitor Ramil e Paulo Leminski
Para ser lido ao som de Vitor Ramil em Mantra Concreto

Caçula da dupla de irmãos bem-sucedidos no MPop do B, Kleiton e Kledir, Vitor (Hugo Alves) Ramil nunca escolheu desafios fáceis. Como eles, gaúcho de Pelotas, VR debutou ainda aos 18 anos, no disco Estrela, Estrela, em 1980, já acantonado por astros, como Egberto Gismonti, Wagner Tiso, Luis Avelar e as cantoras Zizi Possi e Tetê Espíndola. Logo no segundo disco, A Paixão de V Segundo Ele Próprio (1984), entremeando suas composições, há trechos de Os Sertões, de Euclides da Cunha, uma tradução do poeta concretista Augusto de Campos (Noigandres), Rimbaud (Sangue Ruim) e seu primeiro encontro com a lira do argentino Jorge Luis Borges (Milonga de Manuel Flores), que renderia adiante a metade em espanhol do disco Délibáb (2010). São faixas como Milonga de los Morenos” (com Caetano Veloso no DVD originado), Milonga de Albornoz, Milonga para los Orientales, Um Cuchilo en el Norte, Milonga de dos Hermanos. A outra metade do disco navega por versos do poeta popular gaúcho João da Cunha Vargas (Chimarrão, Pingo à Soga, Tapera, Mango).
Em “Tango” (1987), com músicos como Nico Assumpção, Helio Delmiro, Marcio Montarroyos, Léo Gandelman, Ramil visita outro poeta, o prêmio Nobel Bob Dylan, em Joquim (Joey), enquanto vai semeando os próprios clássicos como Sapatos em Copacabana. Marco em sua trajetória, Ramilonga (1997) lança a “Estética do Frio”, que propõe um deslocamento do eixo cultural do sudeste para o sul do país, em temas como Milonga das Sete Cidades, Indo ao Pampa, Causo Farrapo, Milonga (do folclore uruguaio) e dois outros poemas de Cunha Vargas, Gaudério e Deixando o Pago. O estelar álbum duplo titulado por um de seus êxitos, Foi no mês que vem (2013), recebe convidados como Ney Matogrosso (Que horas não são?), o uruguaio Jorge Drexler (Viajei), o argentino Fito Paez (Espaço), Milton Nascimento (Não é céu), o percussionista Marcos Suzano e a Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro (Livro Aberto).
Ramil voltaria a Dylan em Tambong (2000), Um dia você vai servir alguém (Gotta serve somebody), com adesão de Lenine, e Só você manda em você (You’re a big girl now) e também o expoente da geração beat, Allen Ginsberg (Para Lindsay) além de um primeiro encontro com a obra de Paulo Leminski (OVvelho Leon e Natália em Coyacán), que seria desdobrado no Mantra Concreto, com mais 14 poemas do curitibano, o homenageado da FLIP (Feira Literária de Paraty) deste ano. Antes dele, o músico que visitou a mítica poeta americana Emily Dickinson em A word is dead, dedicou um disco inteiro a uma poeta conterrânea, Angélica Freitas, em Avenida Angélica (2022). De Rilke Shake e Família vende tudo a Stradivarius, Mulher aranha, Poema da mulher suja, Vida aérea, Versus eu, A mina de ouro de minha mãe e minha tia, Ringues polifônicos, Cosmic Coswig Mississipi e Siobham.
Paulo Leminski (Filho, 1944-1989), descendente de polonês, português, negro e indígena, é um multiartista de difícil classificação. Escritor, poeta, músico, publicitário, jornalista, tradutor, ensaísta, professor, além do português, dominava inglês, francês, espanhol, latim, grego e japonês, além de ter conhecimentos em polonês e hebraico. Devoto dos haicais do japonês Matsuo Bashô, a quem biografou (A Lágrima do Peixe), era faixa-preta e professor de judô. Estreou com cinco poemas, em 1964, na rigorosa revista Invenção, dirigida por Décio Pignatari, veículo do concretismo paulista liderado pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Fundador do Grupo Aporo, que combatia “o provincianismo cultural de Curitiba”, Leminski sacudiu os cânones, em 1975, com a “prosa experimental” de seu volumoso Catatau, livro que levou oito anos escrevendo. Publicaria também a coletânea Caprichos e Relaxos” (1983), mais Distraídos Venceremos (1987), e outras biografias de seus inspiradores. Como o poeta simbolista Cruz e Sousa (O Negro Branco), o dissidente comunista Leon Trotski (A Paixão Segundo a Revolução) e o luminar religioso Jesus Cristo (Jesus: a.C). Sua antologia completa, Toda Poesia (Companhia das Letras), publicada postumamente, em 2013, sob organização de sua companheira, Alice Ruiz, foi recordista em vendas.
Sua faceta de compositor também foi relevante, com destaque para Verdura, gravada por Caetano Veloso no disco Outras Palavras, de 1981. E mais parcerias presenciais e póstumas, num arco estético eclético, de Paulo Cesar Cascão, do punk brasiliense Detrito Federal (Adolescência) a Itamar Assumpção (Dor Elegante, Filho de Santa Maria, Hard Feeling), Zé Miguel Wisnik (Gardênias e Hortênsias, Polonaise), Luciana Souza (Chuva), Arnaldo Antunes (Além Alma). O mais assíduo comparsa, foi o novobaiano Moraes Moreira (Mancha de Dendê não sai, Baile no meu Coração, Alma de Guitarra, A Grande Ciranda, Morena Absoluta, Pernambuco Meu, Decote Pronunciado, com Pepeu Gomes), e ainda, Zeca Baleiro (Reza), Carlos Careqa (Isto), Iara Rennó (Rosa e socos) e Guilherme Arantes (a trilha sonora do infantil Pirlimpinpim, com Xixi nas Estrelas, entre outras). Articulada por sua filha, Estrela, a seleta Leminskanções (2014) traz entre autorias solo e parcerias, “Não mexa comigo”, “A você amigo”, “Adão”, “Esta voz sendo ouvida em Marte”, “Navio”, “Ímpar ou ímpar”, “Mudança de estação”, “ogum” e “Live with me”, adaptação de William Shakespeare.
O álbum Mantra Concreto, com capa inspirada num cartaz exortação russo de Vladimir Maiakovski e Alexander Rodchenko, da Imprensa Estatal de Leningrado, promove o encontro destes dois gigantes. Também escritor (Pequod, Satolep), Ramil procurou extrair musicalidade da sintética argamassa versificada por Leminski. Como na brevidade de Será Quase, em que violão e voz do solista tem apenas o acompanhamento da kalimba de Santiago Vazquez: “Um dia sobre nós também/ vai cair o esquecimento/ como a chuva no telhado/ e sermos esquecidos/ será quase a felicidade”. Tablas e programação eletrônica de Alexandre Fonseca sincopam as janelas segmentadas (“A pena chama/ a chama vela/ a pena/ chama/ a vela/ pena”) de Anfíbios. Ramil faz escorrer sua viola com slide nos tempos deslizantes de Um Bom Poema (“Leva anos/ cinco jogando bola/ mais cinco estudando sânscrito/ seis carregando pedra”).
“Este planeta vai ser o mais barulhento do sistema solar, já está sendo!”, vocifera Leminski, coadjuvando ao fundo sua própria De Repente (“Tenho a impressão/ que já disse tudo”) na abertura do disco. Balada compassada, sob o baixo sintetizado e programação de Edu Martins, mais percussão de esculturas metálicas de Rogério Botelho, Teu Vulto desenha um acalanto exasperado: “Você/ que a gente chama/ quando está com medo e mágoa/ quando está com sede e não tem água”. O rondó Administério circula sua letra concêntrica nos falsetes de Ramil, burilados pelos violinos e arranjo de cordas de Vagner Cunha. Escorada apenas no violão, voz e baixo acústico, transita a dedilhada Profissão de Febre (“Quando chove/ eu chovo/ faz sol/ eu faço/ de noite/ anoiteço”). Por sua vez, Palavra Minha (“vim pelo caminho difícil/ a linha que nunca termina”) transcorre entre o fado e o folk (violão de nylon de Carlos Moscardini).
Já gravada anteriormente por Ramil, “O velho Leon e Natalia em Coyoacán, uma figurada cena amorosa entre Trotski e sua companheira Natália Sedova (“nem casacos nem cossacos como em Petrogrado aquele dia/ apenas você nua e eu como nasci”) tem cama de trombones de José Milton Vieira. Guitarra com slide chorando bluesy, Sujeito Indireto (“Quem dera eu achasse um jeito/ de fazer tudo perfeito/ feito a coisa/ fosse o projeto”) também incorpora tilintares de máquinas de escrever. Leminski ressurge com a voz em loop (Festa), sob o bordado da guitarra de Toninho Horta, no poema de título trocadilhesco (uma das habilidades do sagaz poeta) Minifesto (“Ave a raiva desta noite/ a baita lasca fúria abrupta/ louca besta vaca solta”). Num diapasão próximo, Caricatura (“Leite, leitura/ letras, literatura/ tudo o que passa/ tudo o que dura”) é assolado por tímpanos, bumbo e pratos sinfônicos (samples BBC) por Edu Martins, responsável pelo baixo sintetizado.
A faixa título, Mantra Concreto, fecha o disco com economia (caixa e prato, baixo acústico, violão e voz) e leveza, num corte sutil de arquitetura projetada: “Você padece/ padecer te resta/ tudo um belo dia/desaparece”.

Maravilha, grande Tárik!!! Parabéns, AmaJazz!!!