O que sobra depois da tragédia

Com casa e estúdio destruídos pelo furacão Katrina, o músico Allen Toussaint definiu assim sua situação: “É quando você procura e percebe que não está lá”

Para ser lido ao som de Allen Toussaint e Elvis Costello em The River in Reverse

O exemplo do pianista e compositor Allen Toussaint merece ser lembrado nestes dias. Há quase 19 anos, em agosto de 2005, ele perdeu tudo com o furacão Katrina. Dias depois da tragédia, em uma entrevista, ele disse: “Pensei que estaria aqui e enfrentaria esse furacão como todos os outros”. Mas tudo havia sido diferente. O que Toussaint encontrou quando voltou para casa foi um cenário de destruição. Ao entrar no local onde morava – que era também seu estúdio – tudo estava coberto por uma espessa poeira cinza. Seu maior patrimônio, o piano Steinway, estava completamente destruído.

O Katrina atingiu Nova Orleans na manhã de 29 de agosto de 2005. Em poucas horas, as águas do Lago Ponchartrain subiram rapidamente e começaram a tomar conta de Gentilly, o bairro residencial onde ficavam a casa e o estúdio de Allen Toussaint. O Sea-Saint Studio ficou completamente alagado.

O músico, então com 67 anos, estava a salvo. Num primeiro momento, ele buscou abrigo em um lugar em Baton Rouge, capital da Lousiana. De lá, depois de alguns poucos dias, decidiu ir para Nova York fazer o que sabia fazer de melhor: tocar. Em mais de quatro décadas de carreira, ele nunca havia deixado de compor e gravar, mas dos palcos ele andava afastado. Era preciso recomeçar.


Allen Richard Toussaint nasceu em janeiro de 1938 em Nova Orleans. Mais novo dos três irmãos, ele era filho de um ferroviário que era também um trompetista amador. Estimulado pela família, Allen aprendeu piano ainda na infância e mal havia entrado na adolescência e já tocava em algumas bandas de blues da cidade. O doidaço Professor Longhair era sua maior inspiração.

Não havia completado 20 anos e Allen Toussaint já era conhecido em turnês não apenas pelo seu estado, mas também pelo vizinho Alabama. Aos 19 anos, começou a gravar e se aproximou de outros músicos, em especial de Fats Domino. Com seu nome – ou pelo menos com o nome que ele usava na época, Al Tousan –, ele gravou seu primeiro LP em 1958 para a RCA. Quatro anos depois, o primeiro sucesso, Java, que teve boa execução nas rádios da região.

Como gostava mais da “cozinha” do que do palco, Allen entrou na década seguinte já numa nova função: Joe Banashak, da Minit Records e mais tarde da Instant Records, o contratou como A&R e produtor musical. Assim, Allen estava em seu habitat natural: podia passar os dias nos estúdios, tocando piano, escrevendo arranjos e produzindo uma série de sucessos para artistas de R&B de Nova Orleans, como os irmãos Art e Aaron Neville.

Os anos 60 serviriam para Allen – ao lado de outros talentosos músicos da sua geração – colocar Nova Orleans de volta no emergente cenário musical. Recebendo encomendas de parceiros tão díspares quanto Linda Ronstadt e Ringo Starr, Allen – a partir de então – alcançaria um novo patamar: o de eminente maestro do funk de Nova Orleans.


Desde 1973, Sea-Saint era a base de Toussaint. A partir daquele momento, a situação seria outra. Sem perder o bom humor, Allen passou a tratar o Katrina como um empresário que o havia chamado para um trabalho que ele não estava – mas era preciso – aceitar. Algo impossível de recusar. “Katrina me colocou de novo na estrada”. Depois de anos em que passou quase todos os dias dentro do Sea-Saint, Allen agora necessitava não apenas gravar, como fazer muitos shows. Era o jeito de sobreviver. O período foi fértil e o pianista lançou três álbuns solo, incluindo um em parceria com Elvis Costello.

Nos dias que se seguiram, Allen Toussaint continuou se espantando com as perdas, contando em entrevistas que havia algumas coisas que ele só lembrava que estavam faltando anos depois. “É quando você procura e percebe que não está lá”, dizia ele. “Muitas pessoas em Nova Orleans ainda permaneceram descobrindo tudo o que foi perdido.”

Allen Toussaint morreu um pouco naqueles dias. Morreria por uma segunda vez mais de uma década depois, na noite de 10 de novembro de 2015, vítima de um enfarte, logo após encerrar uma apresentação em Madri. Ele tinha 77 anos. Sua arte e seus ensinamentos seguem vivos.

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Autor: Márcio Pinheiro

Jornalista, roteirista, produtor cultural

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