Tárik de Souza lembra as incríveis peripécias quase sobrenaturais de Waltel Branco, que vão de João Gilberto e João Donato a Villa Lobos e Dizzy Gillespie
Para ser lido ao som de Waltel Branco em Waltel Branco Plays Henry Mancini

Pode-se dizer que o paranaense de Paranaguá, Waltel Branco (1929-2018) é um personagem quase sobrenatural da música brasileira. É o que narra, às vezes com ares de fábula e alguma nebulosidade, a biografia Waltel Branco – O Maestro Oculto (Banquinho Publicações, 506 páginas), do jornalista Felippe Anibal. Violonista, baixista, maestro, arranjador, regente, compositor, professor, produtor, WB atuou em várias latitudes. Da música erudita a movimentos como bossa nova, sambalanço, soul, samba jazz, Jovem Guarda e segmentos bregas diversos. Participou de trilhas de novelas, foi diretor musical da TV Globo, mas seu nome nunca cintilou como o dos colegas com quem conviveu e/ou partilhou microfones. Gente como João Gilberto, Radamés Gnattali, Pixinguinha, Vinicius de Moraes, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Tim Maia, Nara Leão, Roberto Carlos, Djavan, Cazuza, Ney Matogrosso, João Bosco, João Donato, Elza Soares, Novos Baianos, Sergio Ricardo, Alceu Valença, Fafá de Belém, Djalma Ferreira, Evaldo Braga, Odair José. E os internacionais Henry Mancini, Dizzy Gillespie, Freddy Cole, Astor Piazzola, Françoise Hardy, para citar apenas alguns.
Roberto Menescal, que o conheceu quando ele dividia um apinhado quarto de pensão com o amigo e admirador João Gilberto, em Copacabana, o chama de “excepcional” na apresentação do livro. “Fiquei muito impressionado com o Waltel pelo seu tocar e por sua tranquilidade. Era o músico mais completo que eu conhecia. Waltel me ensinou muitas coisas nos inúmeros encontros que tivemos pela vida afora! (…) Tive o privilégio de trabalhar com o Waltel principalmente na Rede Globo, onde ele foi importantíssimo para a criação da linguagem musical em televisão”, sentenciou.
Prematuro de sete meses, filho do capitão do Exército e músico Ismael Branco e Lia Alves Branco, ele foi batizado Walter e assim chamado até quase a segunda década de vida. Apenas quando deu baixa no Seminário Maior Claretiano, em Curitiba, onde foi cursar teologia, o abade corrigiu seu nome para a grafia errada que tinham lhe dado no cartório. Waltel/Walter pensou numa retificação oficial, mas percebeu que seria mais original manter o erro vida afora. E apesar do sobrenome Branco, Waltel era negro, e foi vítima do racismo estrutural do país, como quando, na escola, o apelidaram de “bola sete”, a única esfera escura da sinuca. No seminário, descartada a inicial vocação religiosa, Waltel embrenhou-se em estudos musicais de canto gregoriano, polifonia renascentista, dodecafonia e música atonal.
Tais conhecimentos valeriam um dos episódios epopeicos do livro. Ele teria ido aos Estados Unidos encontrar-se com o também violonista virtuose clássico/popular Laurindo de Almeida, radicado no país após o fechamento dos cassinos. Acabou entrando em contato com o maestro Stanley Wilson, um dos pioneiros na produção de trilhas para cinema. Segundo depoimento do próprio Waltel ao livro, Stanley precisava transcrever para outros instrumentos uma peça do maestro e pianista Igor Stravinsky (1882-1971), então radicado nos EUA. Seu conhecimento de música serial o fez decifrar a estrutura matemática da partitura do erudito russo. Apresentado a Stravinsky por Wilson após a façanha, o potentado vanguardista espantou-se por se tratar de um músico brasileiro. “Ele desatou a falar sobre a divisão rítmica da bossa nova”, diz o relato do livro. “Ele se interessou muito por essa mistura de erudito com jazz, com a bossa nova”, garantiu Waltel.
Esse encontro foi o prefácio decisivo da edificação de uma das muitas lendas que perpassam a história do biografado. Teria começado nessa época nos EUA, sua relação com o maestro ítalo americano Henry Mancini (1924-1994) e a colaboração na feitura da mítica trilha do filme The Pink Panther (A Pantera Cor de Rosa). Diversas versões são apresentadas no livro, mas a conclusão final é que haveria pouca possibilidade (inclusive cronológica) de Branco ter contribuído para a famosa música tema da Pantera. No máximo, ele assinou os arranjos de um suingado LP Mancini Também É Samba (Mocambo, 1966), que teria sido apreciado pelo homenageado em suas incursões no Festival Internacional da Canção, no Rio. Na edição de 1968, aliás, o violonista fez o arranjo e acompanhou ao violão uma estrela pop francesa da época, Françoise Hardy, na canção A quo ça sert?. O livro faz desfilar a estonteante versatilidade do biografado e sua capacidade de viajar da mais compenetrada execução de inflexão erudita (em discos solos como Violão Recital, de 1965, Músicas do Século XVI ao Século XX, de 1968, Recital, de 1976, J.S. Bach, R. A. Schumann, E. Grieg, Villa Lobos, 1982) à produção esmerada de hits de astros do universo brega, como Evaldo Braga, Odair José, Agepê, Roberta Miranda, além do arranjo fulminante do retorno ao sucesso do inoxidável Cauby Peixoto via Bastidores, de Chico Buarque, em 1980. E ainda, a bordo de sua cabeleira black power, preparar a embalagem de cordas para o soul incendiário de Tim Maia, Tony Tornado, Hyldon, Os Diagonais, Dom Mita, Fábio e Tony Bizarro. E a nordestinidade cosmopolita de Alceu Valença e Zé Ramalho.
Embora o desclassifique como movimento musical, apesar de intitular o capítulo com o nome de um livro e um filme que historiam o fenômeno (A Bossa que Dança), o biógrafo reconhece a relevância de Waltel nas hostes do sambalanço. Ele integrou o conjunto Milionários do Ritmo, do fundador do movimento, o compositor e organista (também às do pré-sintetizador solovox) Djalma Ferreira. Não precisou ir muito longe do bunker do sambalanço, a boate Drink, do organista (onde também vicejariam Ed Lincoln, Miltinho, Orlandivo, Celso Murilo, Silvio Cesar), para ingressar no samba jazz bossa nova, do Beco das Garrafas, todos vizinhos no agito do bairro do Leme. Amigo pessoal de João Gilberto (que o acordaria no dia de seu casamento, esquecido pelo próprio músico), antenado com a batida criada por ele, Waltel participou também da fase expandida do grupo Copa 5, liderado por J.T.Meirelles (sax e flauta), ao lado de Menescal (violão), Eumir Deodato (piano), Gusmão (contrabaixo) e Edison Machado (bateria). E do disco solo do outro exímio baterista do grupo, Dom Um Romão, “o Mefistófeles da bateria”, como foi apelidado.
A esta altura, em 1964, Waltel já tinha integrado os coletivos Dance Conosco (ao lado de grupos liderados por Netinho, José Marinho e o então trombonista João Donato) e Os Cobras (junto com Moacyr Silva, sax, Chaim Lewak, piano, Julinho, trompete e Maciel trombone), além do solo Guitarras em Fogo (com Baden Powell, Geraldo Vespar e Neco), em seu nome (depois transformado em Guitarra Bossa Nova pelo sagaz Nilo Sérgio, dono da gravadora Musidisc, sede do sambalanço). Em todos eles, havia composições de Branco, que no disco de Dom Um, pérola do afro samba jazz, contribuiu com Dom Um Sete e África. Entre seus inestimáveis serviços prestados à bossa, Waltel acumula arranjos e a direção musical de várias apresentações no Brasil e no exterior de João Gilberto, com quem costumava flanar pela remota Barra de Guaratiba, na zona oeste do Rio, altas madrugadas.
Em dois “crossovers” instigantes com o BRock, foi Waltel quem estimulou (e teceu as cordas do arranjo) o lançamento da gravação do clássico do roqueiro Lobão Me Chama por João Gilberto, que entrou em trilha de novela. E ainda convenceu Cazuza a trocar o ritmo de balada de sua Faz Parte do meu Show, como foi registrada originalmente pelo grupo Herva Doce. Waltel trouxe a canção para o compasso da bossa nova, o que a transformou em hit nacional.
Outro episódio curioso nasce do encontro do biografado com o ás do bebop, o trompetista americano Dizzy Gillespie (1917-1993), em Nova York, no início dos anos 60, apresentado prelo baterista Chico Hamilton, outro craque do jazz. Branco foi imediatamente convocado para substituir o baixista do quinteto de Gillespie durante uma temporada na boate Number One, onde, além da troca musical com a sumidade do trompete torto, aprendeu sobre direitos dos civis negros, em ebulição na época. Numa das noites, o garçom advertiu Branco que um senhor brasileiro, numa das mesas, queria falar com ele. O homem apresentou-se como empresário, que estava nos EUA para consolidar uma rede de televisão no Rio, e o convidou para trabalhar com ele. Seu nome? Roberto Marinho.
Foi o que aconteceu. Desde 1965, ano da inauguração da TV Globo, Waltel tornou-se pau para toda obra do Departamento Musical da emissora, compondo inclusive música incidental para criar atmosfera de cena das telenovelas. A partir de Véu de Noiva, em 1969, com as trilhas sonoras personalizadas, o trabalho aumentou. O diretor artístico da emissora, Daniel Filho, passou a incumbência: “Waltel eu vou precisar de você também nas trilhas. Você vai pegar os arranjos. A partir dali, comecei a pegar todas as novelas”, enumerou. E lá se foram Irmãos Coragem, Assim na Terra como no Céu (lançada em LP com seu nome, em 1970), O Bofe, Bandeira 2, Selva de Pedra, Escrava Isaura, além de programas como Vila Sésamo, Chico City” e a abertura do Fantástico – O Show da Vida. Waltel ainda encontrou tempo, em 1975, para lançar o álbum autoral Meu Balanço, considerado “marco do jazz fusion no Brasil”, como anota o livro.
As portas do mercado começaram a abrir-se ao paranaense retraído e amigável, no estúdio da Odeon, em 1954, quando no intervalo de uma gravação resolveu aquecer as mãos tocando uma peça de Johan Sebastian Bach. Um homem de óculos grossos que passava arregalou os olhos e perguntou se ele estava lendo aquilo na partitura. Waltel, intimidado, perguntou se havia cometido algum erro. Em troca recebeu elogios (“estava perfeito”) e pela habilidade técnica, o convite para trabalhar com o ouvinte acidental, o maestro gaúcho Radamés Gnatalli (1906-1988), como ele, adestrado nas áreas erudita e popular. Foi Radamés quem o levou para a Rádio Nacional, onde conheceu a nata dos músicos da época, e aos lendários saraus de Jacob do Bandolim, onde conviveu com Pixinguinha (1897-1973) que teria oferecido parceria a ele num choro, cuja partitura nunca foi localizada.
Waltel também se aproximou do pilar erudito Heitor Villa Lobos (1887-1959), cujas conferências frequentou na Escola Nacional de Música. Encontraram afinidades no canto orfeônico, que ele estudara no seminário, e principalmente no fato do autor das Bachianas Brasileiras ter residido, dos 18 aos 25 anos, na Paranaguá natal de Waltel. Ali, ele mergulhou no folclore do fandango, vinculado à cultura caiçara, pontuado por viola adufo e rabeca. Embora local, Branco não conhecia o gênero, para o qual rascunhou projetos que não se concretizaram. Por outro lado, ele executou ao violão a Sonata em Mi Menor (Albada e Fandango), de Frederico Moreno Torroba, num recital de violão, aberto pelo Prelúdio nº 1 e Estudo nº 3, de Villa Lobos, além de um improviso baseado em Ravel. O ouvinte era muito especial, o espanhol Andrés Segovia (1893-1987), simplesmente o maior violonista do mundo na época.
O onipresente músico, que Vinicius de Moraes chamava de Monsieur Blanc, não caiu de paraquedas frente à sumidade. Ganhou um concurso da Rádio Difusora Francesa, cujo prêmio foi o acesso ao curso Música em Compostela, idealizado por Segóvia para difundir as diversas facetas da música espanhola. Após a pequena apresentação de Waltel, o mestre o elogiou e perguntou com quem ele tinha aprendido a “técnica superior”. A resposta o surpreendeu: “Aprendi com você. Tenho todos os seus discos. E desde o começo eu sempre tentei te imitar, tocar igual. Horas e horas de estudos…” Impressionado, Segóvia estreitou os laços com o aluno e, segundo seu relato, transcrito no livro, o convidou para substitui-lo no curso superior de violão, enquanto ele viajava.
Personagem de tantas peripécias (e mais ao volante; de inenarráveis pegas em alta velocidade pelas ruas), enredo da escola de samba Leões da Mocidade, condecorado pelo então governador Jaime Lerner com o título de Grão Mestre da Ordem do Pinheiro, a mais alta comenda do governo do Paraná, Waltel Branco não angariou fama a altura do pedestal que o livro O Maestro Oculto agora ergue para ele. Como disse Menescal na apresentação: “Ave Waltel!!!”

Muito bom saber, obrigado!