
Antônio Carlos Miguel comenta sobre mais um western gay e depois viaja em detalhes de Estranha forma de vida
Ouça Estranha forma de vida, com Caetano Veloso
Em cartaz no MUBI, o enredo do novo curta do cineasta espanhol pode ser apressadamente resumido como um O segredo de Brokeback Mountain com final feliz. Até agora, somadas e divididas as análises de críticos profissionais ou diletantes (na plataforma de streaming) o resultado é alto, 7,8.
Não crítico de cinema, tendo a concordar com a nota. Foram 31 minutos de diversão. Tamanho perfeito para uma narrativa que tem cara de ensaio e tributo ao estilo que por décadas foi o mais popular de Hollywood – e até da então poderosa Cinecittá dos anos 1960.

Almodóvar (assim, sem o primeiro nome, é creditado o diretor na abertura) larga mão do humor que marca boa parte de sua obra para se passar por um John Ford, ou um…? Meu pai, que sempre adorou, teria prazer em listar diversos outros nomes, mas, não anda mais por aqui. E não usarei buscador para bancar conhecedor profundo – enquanto me vem à cabeça Sergio Leone, reforçando a menção à linha spaghetti.
Strange way of life (assim, a tradução literal para o inglês do clássico fado batiza o filme também falado no idioma de John Wayne e Clint Eastwood) tem narrativa sóbria. O mesmo tom pauta as atuações nada afetadas dos protagonistas, Ethan Hawke e Pedro Pascal. Detalhe que reforça a referência ao longa-metragem estrelado pelo finado Heath Ledger e por Jake Gyllenhall.
Outros paralelos existem (ambos diretores não são estadunidenses, ou italianos, e mergulham no gênero ianque por nascença), mas, há diferenças. Enquanto Ang Lee, fiel ao romance que adaptou, situa a relação dos cowboys nos anos 1960, Pedro Almodóvar volta até o Velho Oeste clássico em seu roteiro, original. Pela reconstituição de época, figurinos, a cidade de uma rua só no meio do deserto (locações no Sul da Espanha), as armas usadas, dá para cravar que se passa um século antes de Brokeback.
O trunfo, a graça do filme, no entender desse macbatucador, é, em alguns detalhes, Almodóvar subverter a fiel reconstituição de época. Saltam ao ouvido e à vista dois momentos. Na abertura, quando Silva (Pascal) entra de cavalo, um jovem (na pele de Manu Ríos), com a cadeira encostada na parede de tábuas do alpendre, canta Estranha forma de vida em português (na verdade, sai de sua garganta a voz de Caetano Veloso procurando o sotaque lusitano). Improvável, mas, possível encontrar um brasileiro tão confortável naquele lugar perdido do Velho Oeste. Impossível era estar ali a canção de Amália Rodrigues (e Alfredo Marceneiro) que veio ao mundo em 1959.

Na sequência final, atrás do leito em que Jake (Hawke) convalesce sob os cuidados do antagonista/cuidador Silva está uma tela com paisagem de deserto do Sudoeste americano. Provável não fosse de Georgia O’Keeffe (1887-1986), que se mudou para Santa Fé (Novo México), onde produziu o melhor de sua fabulosa obra, nos anos 1930.

Nós créditos, são listados outro quadro da artista e três de um pintor estadunidense que desconhecia, Maynard Dixon (1874-1946). Busco na Internet e os trabalhos dos artistas contemporâneos e conterrâneos têm muito em comum. Sim, as mesmas paisagens permitem uma natural aproximação, mas, dá para acreditar que um tenha conhecido a obra do outro.

Há cerca de dez anos, ao “descobrir” Georgia, pensei que dialogava (uma sem saber da existência da outra) com algo do estilo de Tarsila do Amaral (1886-1973). Mas, entre O’Keeffe e Dixon há muito mais em comum. Pelo que me lembro, o bom documentário dos brasileiros radicados em Nova York Tatiana Issa e Guto Barra, Georgia O’Keeffe + Novo México (2017), que assisti há alguns anos no Canal Curta!, não menciona Maynard Dixon. Nem Tarsila.
A brasileira deve ter sido delírio meu, como amigos pintores e curadores de arte retrucaram. Mas, Almodóvar percebeu (ou leu sobre) a conexão Georgia-Maynard.
