Priscilla, a rainha entediada de Graceland

O casamento de Elvis (Jacob Elordi) e Priscilla (Caille Spaeny) no filme de Sofia Coppola / Divulgação: Philippe Le Sourd

Antônio Carlos Miguel acompanha mais um mergulho na alma feminina segundo a sensibilidade de Sofia Coppola

Para uma cineasta que, em seu terceiro longa, conseguiu criar um perfil simpático de Maria Antonieta, não havia dúvidas de que a empatia seria quase automática em Priscilla. Baseado na autobiografia Elvis e eu, da ex-senhora Presley em parceria com Sandra Harmon, é, naturalmente, um filme “chapa branca”. Mas, o título escolhido para, nesse sábado, 14/10, fechar a sessão de gala da 25º edição do Festival do Rio (e que entrará em cartaz no Brasil em 26 de dezembro) exibe muitas virtudes. E também confirma Sofia Coppola como uma diretora que tem autoridade de sobra para tratar das dificuldades de mulheres no mundo macho.

Sofia Coppola: de atriz cancelada a inventiva diretora /
Divulgação: Melodie McDaniel

Em 1990, ela foi, antes de a expressão existir, cancelada como atriz, apontada como um dos fatores para O poderoso chefão 3 ser o pior da trilogia. A moça de 19 anos só estaria ali pelo nepotismo de Francis Ford Coppola, era o que se afirmava, mesmo que já tivesse alguns filmes do pai no currículo. Ao estrear nas telas, convenceu pelo desempenho de bebê no berço, exatamente no primeiro The Godfather, lançado em 1972. Piada fora,o massacre da crítica pode ter influenciado na opção e, assim, o mundo do cinema perdeu uma atriz em formação e ganhou uma diretora que brilhou já no longa-metragem de estreia, As virgens suicidas (1999). Desde então, não faltaram provas (Encontros e desencontros e Um lugar qualquer estão entre elas) de que Sofia fez a escolha certa. Priscilla é mais uma.

Há outros paralelos possíveis entre as personagens Maria Antonieta e Priscilla. A rainha da França decapitada aos 38 anos, em 1793, tinha 14 anos quando trocou a Áustria natal para se casar com toda pompa com Luís XVI. Também aos 14 anos, em setembro de 1959, em uma base militar dos EUA na então Alemanha Ocidental, a futura senhora Elvis Presley conheceu o primeiro amor – e seu dono por 14 anos. Se a primeira não teve como, a segunda, quase dois séculos após, achou uma saída.

O recorte na vida de Priscilla Beualieu (na pele da atriz Cailee Spaeny) feito pelo filme vai do primeiro encontro com o Rei do Rock (revivido por Jacob Elordi) ao dia em que decide se divorciar e atravessa os portões da cafona mansão Graceland para recuperar a sua vida.

Cena de Priscilla / Divulgação: Sabrina Lantos

Dez anos mais velho, afastado da música, um entediado Elvis cumpria serviço militar na Alemanha desde março de 1958. Período no qual vivia mais uma das mortes que acumulou até a derradeira, em agosto de 1977. A primeira foi a perda do irmão gêmeo Jesse Garon Presley, em 8 de janeiro de 1935. A segunda, em 1956, ao cair nas garras do empresário Colonel Tom Parker, dois anos depois de suas primeiras e definitivas gravações no estúdio da Sun Records, quando cristalizou o rock ‘n’ roll; a terceira, dupla, o ingresso no Exército e a perda da mãe, Gladys Love (em agosto de 1958); depois, já no período enfocado no filme de Sofia Coppola, ao dar baixa das Forças Armadas e ser convocado por Hollywood. Mas, aí estamos falando de outro biopic recente, Elvis, de Baz Lurhman. O foco de Sofia é Priscilla e seus 14 anos de vida ao lado de um jovem astro que começava a perder o rumo.

A narrativa é conduzida pelo olhar da menina seduzida pelo sujeito que iria desperdiçar beleza, carisma e talento em dezenas de filmes e discos cada vez mais vazios. Na trilha sonora, nada de gravações de Elvis, trocadas quase sempre pelo também insosso pop da época e sem se preocupar com a cronologia. No início, por exemplo, ali por 1960, é tocado o pop psicodélico Crimson and clover, sucesso de Tommy James and the Shondells de 1968. O que pode incomodar apenas cricriconnoisseurs.

No Exército, Elvis já usava estimulantes para aguentar a rotina na caserna e recomendou uma drágea para a adolescente se manter acordada na sala de aula. Dois anos depois, na primeira visita de Priscilla à mansão em Memphis, ele resiste ao tesão da virgem com fome de viver e oferece a mesma dosagem de sonífero que usa, apagando-a por dois dias. Por falar em drogas, uma das revelações (para quem, como eu, não leu Elvis e eu) é de que o casal teria experimentado LSD. Período em que o cantor andou interessado na filosofia oriental. Até receber ordem (talvez do empresário, o filme não deixa claro) de se afastar da trilha contracultural que começava a crescer nos EUA. A partir da virada do milênio, novos estudos científicos mostram que as drogas alucinógenas podem ajudar no combate a vícios bem mais pesados – como os adquiridos por Elvis com prescrição médica. Mas, o afundamento nas drogas lícitas não é aprofundado em Priscilla.

Católicão, mesmo vivendo juntos, Elvis aguarda o casamento, em 1967, para consumar o ato. Enquanto, no mundo lá fora, ou simulacros do mundo, estúdios de Hollywood e palcos dos cassinos de Las Vegas, vive seus muitos casos amorosos, que o espectador acompanha com Priscilla através da imprensa. Tirando os momentos no quarto de casal, ela vive com um Elvis sempre cercado de sua patota de amigos, aspones, seguranças, machos infantilizados. 

Ao contrário da frenética narrativa de Elvis, habitual na obra de Baz Lurhman, o ritmo do filme de Sofia é lento. Transmite a rotina de tédio que é a vida de Priscilla trancafiada em Graceland. Merece destaque a reconstituição de época. Algo que os orçamentos de Hollywood permitem. Só o que foi gasto no aluguel de carros rabo de peixe vintage, possivelmente, cobriria muitas produções brasileiras inteiras.

Reportagem d’O Globo em Memphis, na celebração dos 20 anos da morte de Elvis Presley / Reprodução

Em outro mérito, Sofia não sataniza o astro decadente. Elvis também foi uma vítima. Mais do que vilão, patético, digno de pena. Caricatura acentuada graças ao visual que adotou ao virar atração fixa em Las Vegas, facilitando a vida dos milhares de impersonators desde então: costeletas exageradas, óculos cafajestes, camisas e jaquetas de golas altíssimas, calças de bocas larguíssimas, tudo cravejado de pedrarias e paetês. Mas, esses são detalhes também apresentados de passagem nos 113 minutos de Priscilla, a rainha entediada de Graceland.

PS: Em agosto de 1997, a convite da extinta BMG-Ariola, cobri para O Globo o aniversário de 20 anos da morte de Elvis Presley. Transformada em museu, a mansão Graceland era bem mais brega e soturna do que a mostrada em Priscilla.

PS2: Enquanto aguardava o horário para subir o texto sobre Priscilla (segundo o pedido da organização do festival, apenas após a sessão desse sábado no Odeon), assisti no Estação Net Gávea ao mais bizarro e delirante filme de Yorgos Lanthimos, Pobres criaturas. Mas, pelo que já fez até agora, Lanthimos é o senhor bizarro.

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Autor: Antonio Carlos Miguel

Amador de música desde que se entende por gente. Jornalista, fotógrafo especializado no mundo dos sons combinados.

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